Projeto Sociedade

Passam trinta e seis minutos das sete da manhã de uma quinta-feira, dia útil sem greves. Não é véspera ou pós-feriado, estamos em outubro; a época tradicional para férias já lá vai. Entro na estação de comboios da minha cidade. Tenho o privilégio de trabalhar a cerca de quinze minutos de comboio de uma grande cidade em Portugal. Como eu, várias pessoas aguardam o comboio que as levará ao destino para mais um dia de trabalho, de escola ou lazer.

Já de livro na mão, o comboio chega à hora marcada, oito minutos depois. A plataforma está bem ocupada, são cerca de setenta pessoas que aguardam lugar – em pé – nas oito carruagens. O comboio não está lotado, longe dos tempos pré-COVID, mas não consigo arranjar um lugar que me impeça de cair, em caso de travagens bruscas. O habitual. A quinta promete chuva e eu arrisco: sigo com o guarda-chuva numa mão e o livro na outra.

Passa um minuto das oito horas, quando chegamos ao destino. Cada um de nós é uma gota no mar de gente que sai do comboio e invade a estação, para espanto dos turistas ali presentes. Somos muitos, mas, daqui a cinco minutos, mais chegarão; cinco minutos antes, outros tantos chegaram. Os turistas ficam uns vinte minutos a observar estas ondas.

O tempo de deslocação para a estação da minha cidade, juntamente com o tempo que demoro entre a estação de destino e o meu local de trabalho, totaliza vinte e cinco minutos. Ao todo, são cerca de cinquenta minutos, sem contar as pequenas viagens de comboio, ida e volta. Números redondos: cerca de uma hora e vinte por dia. Sublinho a indicação acima; ainda que privilegiado, perco oitenta minutos, no mínimo, na deslocação casa-trabalho, e consequente regresso. Um tempo precioso que foi bem aproveitado no contexto de confinamento.

Para aqueles que não sofreram, direta ou indiretamente, com o vírus SARS-CoV-2, a possibilidade de teletrabalho foi um upgrade à rotina diária. Com as limitações que todos recordam, o confinamento também resultou em mais tempo para a família e os amigos, para o exercício físico, para hobbies, até para o descanso. Ou seja, o tempo que perdemos diariamente é dedicado a outras atividades bem mais prazerosas. Essa distinção não fraturou a sociedade, já de si separada entre aqueles que sofreram com a doença e aqueles que tiveram a sorte de passar pelos pingos da chuva, renovou o tecido social com novas formas de comunicar e de ajudar o próximo. Mesmo para todos os que não podiam trabalhar ou para todos os trabalhadores indispensáveis e que se levantavam todas as manhãs com uma missão heroica pela frente.

A frase de Dickens envelheceu muito bem e é perfeitamente aplicável neste contexto: “It was the best of times, it was the worst of times”. A possibilidade de trabalho remoto ficou na memória de todos os felizardos que nada perderam nesse tempo turbulento, mas o tecido empresarial português tem memória curta. Os portugueses continuam a gastar muito do seu tempo nas deslocações para o trabalho e no regresso a casa, e a urgência de medidas para combater as alterações climáticas não parece suficiente para alterar este contexto. A emissão de gases de efeito estufa fruto destas deslocações diárias corresponde a cerca de um quarto da totalidade dessas emissões.

Podemos tratar desta questão semanal ou mensalmente. Podemos voltar à mesma em tempos de orçamento do Estado. Seria interessante, no mínimo, que os responsáveis políticos olhassem para a sociedade como um todo. Não é «só» uma questão ambiental, não se trata «apenas» de mais tempo para descansar ou estar com a família. O confinamento acabou por trazer uma nova perspetiva acerca do papel do trabalho na sociedade. Infelizmente, em Portugal, continuamos a ter problemas de visão.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico

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