Paulo Côrte-Real: “O Ativismo é uma identidade”

Doutorado em Economia pela Harvard University, Paulo Côrte-Real é Professor na Nova SBE. Membro da ILGA Portugal desde 2003, foi Vogal da Direção no mandato 2005-2008, Presidente da Direção nos mandatos 2008-2011 e 2011-2014 e é atualmente Vice-Presidente da Direção. Em 2011, foi eleito para a Direção da ILGA-Europe (a Região Europeia da ILGA – International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), tendo desempenhado o papel de Co-Secretário da Direção num primeiro mandato. Reeleito em 2013, é atualmente Co-Presidente da Direção da ILGA-Europe, membro da Amnistia Internacional Portugal e Presidente do seu Conselho Fiscal, de Responsabilização e Controlo.

O Repórter Sombra esteve à conversa com o Paulo para ouvir, na primeira pessoa, a história do percurso que o levou até ao activismo. Simultaneamente, aproveitamos para perceber melhor qual é o papel da ILGA Portugal na luta contra a discriminação face às pessoas LGBT e como é que o seu Vice-Presidente encara a vida de combate ao preconceito.

Como é que te tornaste o Paulo Côrte-Real que conhecemos da vida pública: um activista pelos direitos LGBT e vice-presidente da ILGA?

Paulo Côrte-Real (PCR): O facto de ter vivido nos Estados Unidos da América foi uma experiência importante. Fui fazer o doutoramento e fiquei lá a viver quatro anos, em Massachusetts. Tive, de facto, mais acesso à cultura no plano LGBT, passei a ter uma noção da história do activismo e também passei a acompanhar melhor todo o trabalho que estava a ser feito e todo o trabalho que faltava fazer. Percebi que existiam situações de extremo sofrimento que eram plenamente evitáveis e pensei que se voltasse para Portugal, coisa que acabou por acontecer, teria de ser mais activo para alterar o estado das coisas. Regressei em 2002 e o activismo, cá, estava ainda muito parado. A ILGA tinha sido formada em 1995, informalmente, e isso significa que já tinha havido algum activismo prévio. Mas não havia sequer uma associação LGBT enquanto tal. Comecei a fazer algum voluntariado, nomeadamente na ILGA, e foi lá que acabei por integrar grupos de trabalho mais relacionados com a intervenção política. Tornou-se a minha primeira experiência de voluntariado sistemática. Foi a partir daí que passei a ter uma ligação constante à ILGA e, desde 2005 até agora, que integro a Direcção, primeiro enquanto vogal e, actualmente, enquanto vice-presidente.

No que é que consiste o trabalho desta instituição, a ILGA Portugal?

PCR: A ILGA tem várias vertentes de actuação mas, basicamente, há um plano que tem a ver com a melhoria da qualidade de vida das pessoas LGBT e das suas famílias, uma vez que a discriminação existe. Temos muitos serviços de apoio, a nível psicológico, a nível jurídico e a nível social, mas também há uma linha LGBT   que funciona em todo o país e que no permite chegar a todo o país. Depois há todo um conjunto de trabalho de intervenção, assim como trabalho comunitário, que passa pelo centro LGBT e que permite, no fundo, que as pessoas possam encontrar outras pessoas que tenham tido o mesmo tipo de experiências de construção identitária. E nesse aspecto é importante referir o voluntariado, que também acaba por ser uma forma de pertença. Ajuda a que as pessoas encontrem força para lidar com as suas próprias situações de discriminação. Além disto, existem campanhas e projectos, para que sejam cada vez menos as pessoas que precisam deste tipo de serviços. É o lado mais político. Tivemos a campanha pela igualdade no acesso ao casamento, que teve muito impacto, a campanha pela identidade de género, a campanha pela parentalidade… Que já vai longa! Enfim, entre tantas outras.

Os projectos podem funcionar mais como uma prevenção face à discriminação. Tentamos criar programas de formação em diferentes áreas, para evitar que haja dificuldades no acesso de pessoas LGBT a determinados serviços. Focamo-nos em sectores fundamentais da nossa sociedade, muitos deles assegurados pelo próprio Estado, e que dizem respeito à segurança, à justiça, à saúde, à segurança social, entre outros. São projectos que servem para sensibilizar e mudar mentalidades, uma vez que a educação contra a discriminação tem que se estender também a profissionais que são fundamentais para que a igualdade seja assegurada a pessoas LGBT.

Quais é que consideras serem as principais lacunas da lei portuguesa em relação à Igualdade entre homossexuais e heterossexuais?

PCR: Para começar, é preciso eliminar a discriminação que existe na própria lei. Só assim podemos combatê-la de forma credível e através do Estado. Isso significa resolver todas as discriminações no âmbito da parentalidade e no que diz respeito à candidatura à adopção. Além disso, e nós temos tentado chamar a atenção para esta questão, o acesso à procriação medicamente assistida é muito importante, para casais de mulheres e para mulheres solteiras. Depois há melhorias em algumas leis, principalmente para as pessoas “trans”. Há falhas que, de alguma forma, já conseguimos identificar e vamos fazer um trabalho mais sistemático de recolha dessas mesmas falhas, de forma a podermos eliminá-las. A juntar a isto, há lacunas em termos de protecção anti-discriminação. Temos proibições de discriminação, que resultaram precisamente de campanhas que fomos desenvolvendo, mas ainda assim a identidade de género, que já faz parte do código penal enquanto uma categoria em relação à qual não se pode discriminar, não está ainda na Constituição. Falta essa harmonização, que é claramente uma prioridade.

E quais foram as conquistas que mais te marcaram na luta LGBT, tanto nacional como internacionalmente, e que achas que se podem traduzir numa evolução na sociedade?

PCR: Em Portugal, sem dúvida que o acesso ao casamento foi uma conquista importante. Foi uma campanha longa, com muitos passos, e que passou por toda uma lógica de estratégias de sensibilização e alargamento da base de apoio. Teve imensa visibilidade, pública e mediática. Tinha a particularidade de ser uma reivindicação facilmente compreensível e perceptível pela sociedade em geral, ou seja, facilmente era discutida numa conversa de café. Quebrou-se um tabu, quebraram-se silêncios e destruíram-se preconceitos. A lei foi, simultaneamente, motor e espelho da realidade da sociedade. Claro que existiram outras conquistas igualmente marcantes, para mim, mas não tiveram o mesmo impacto social. A questão do casamento tem esse poder, aqui e noutros países. O referendo na Irlanda, por exemplo, que em si mesmo será uma coisa negativa, porque estamos a falar de direitos de minorias, mobilizou a população inteira. Nos Estados Unidos, embora tenha sido uma vitória judicial, também foi evidente que se reflectiu ali uma mudança social.

Até que ponto é que achas que os arraiais Pride e todas as manifestações LGBT ajudam a celebrar as vitórias e a difundir a necessidade de combater a discriminação?

PCR: O Arraial é um momento muito importante para a ILGA; tanto o Arraial, que é mais celebratório, como a marcha, que é mais reivindicativo. Dão visibilidade ao nosso trabalho e servem para contrariar o silêncio. Além disso representem o orgulho, por oposição à vergonha, para a qual o preconceito e o insulto remetem. A construção identitária para as pessoas LGBT é um processo difícil, por isso é necessário celebrar. Acabam por ser momentos que nos dão força para lutar contra a discriminação, para nos encontrarmos com pessoas que viveram uma construção parecida com a nossa e, no fundo, também são eventos que incitam o espírito comunitário.

É normal que existam reacções negativas. O preconceito é, ainda, forte em Portugal. Mas, de certa forma, também é positivo que essas reacções existam, porque através delas o preconceito torna-se mais visível. E esse silêncio, o silêncio da discriminação, também tem de ser quebrado. Há anos e anos que persiste e durante demasiado tempo não houve sequer relatos de crimes de ódio em relação a pessoas LGBT. E não é porque não existissem, como é óbvio. Por isso, também queremos mostrar que a discriminação existe e que o preconceito existe. Queremos mostrar que está quase tudo por fazer.

Remetendo um pouco para a tua experiência pessoal, até que ponto é que ser homossexual pesa, ou pesou, na forma como pensas a discriminação? Já a sentiste na pele?

PCR: Claro! (risos). Acho que, basicamente, a discriminação é sentida na pele por qualquer pessoa LGBT. São discriminadas diariamente, ponto! É o próprio sistema que nos discrimina. Acontece todos os dias, em todos os momentos. Depois, só a quantidade de vezes em que ouvimos um insulto, obriga-nos sistematicamente a intervir. Claro que também há os silêncios, igualmente discriminatórios. Viver em silêncio, omitir o que quer que seja quando as outras pessoas não o fazem, tudo isso é discriminação. As pessoas que passam a vida a dizer que não gostam de demonstrações públicas de afecto, mas que não questionam o porquê de não gostarem, são capazes de estar, pura e simplesmente, a censurar-se. As pessoas que não levam a pessoa com quem estão ao jantar de natal, ou que não vão ao jantar de natal para não terem de levar a outra pessoa, os homens que são questionados sobre a “sua mulher” e as mulheres que são questionadas sobre o “seu marido” e se deixam ir na conversa sem mencionar que são homossexuais… Enfim, cada vez que isso acontece, estamos a ser vítimas de discriminação. É imensamente abrangente e sistemática.

O facto de eu próprio ser homossexual forçou-me a atentar mais a isso e a descobrir todos os mecanismos da discriminação. Tenho uma percepção da sociedade que vai sendo alterada em função desse percurso. De alguma maneira, é um privilégio (risos), porque essa percepção fica bem mais aguçada. E sinto-me obrigado a agir em relação a isso. O activismo não é uma actividade, é uma identidade. É aquilo que eu sou.

O quê que ainda te motiva a continuar e a persistir na Igualdade, tendo em conta todas as derrotas próprias de uma luta tão singular?

PCR: A ideia de desistir não existe sequer como uma possibilidade. Precisamente por ser algo tão identitário. É inevitável continuar e as resistências acabam por motivar mais do que menos. Além disso, o activismo propicia toda uma vivência de comunidade e as pessoas que estão à minha volta são também uma motivação. Partilham comigo uma energia anímica que só me dá razões para continuar. Não me parece que seja possível desaparecer (risos)!

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