Pagos a Dobrar

No filme que Hitchcock gostaria de ter realizado, quase tudo roça a perfeição, num dos expoentes máximos (senão mesmo “o” expoente) do film noir. Fred MacMurray é um agente de seguros que se apaixona por Barbara Stanwyck, decidindo ambos matar o marido dela para, juntos, ficarem com o dinheiro da apólice. No entanto, além da esperteza de Edward G. Robinson, o perito da seguradora que vai investigar aquela morte, outros twists quase dão cor a esta história, tal a riqueza do enredo de sombras e mistério em mais um trabalho sublime de Billy Wilder.

Se vi este filme pela primeira vez há uns anitos, uns quinze (vinte, talvez?), há três ou quatro meses aproveitei um dia em que a Sofia esteve fora para o rever. E quão gratificante nos sentimos ao confirmar que não nos equivocámos da primeira vez, fosse pela tenra idade ou pela novidade, pelo fascínio dos primeiros passos pelas obras de arte ou pela surpresa de esbarrarmos com qualquer coisa de magnífica; ao revê-lo na tranquilidade silenciosa do lar, pude comprovar que já então a experiência (também caseira) não foi um equívoco, mas algo mais profundo, consistente, e um esteio essencial na experiência cinematográfica da minha vida.

Nunca é demais reiterar que o Filme Negro é um género que me é simpático. Porque me acompanharam naqueles anos iniciáticos do final da adolescência, da TV2, das últimas cassetes VHS e dos primórdios do cabo. De Philip Marlowe e Sam Spade, de Hitchcock a Dmytryk, de Casablanca a Corpo e Alma, o Noir abraça artistas e géneros tão dispares, e, no entanto, deixa sempre uma linha reveladora comum a todas as suas obras, linha essa entrelaçada pelo preto-e-branco e passados sombrios, por mulheres fatais e detectives cínicos, por vidas de submundo ou da alta roda, perseguições, Los Angeles e a noite.

Pagos a Dobrar não precisa de mais de cem minutos e uns pozinhos para desenvolver todo o potencial de uma história que, na sinopse, pouco convence, mas que cedo nos prende. Realizado no coração da década de quarenta, o período de ouro da sétima arte, o modo como a trama nos envolve (como aliás acontece em tantos filmes escritos/realizados por Wilder) é um dos segredos e marcas do realizador austríaco. Segredo porque nos atrai sem que muitas vezes descortinamos a “fórmula”, e marca pelas vezes que nos deixa boquiabertos (O Crepúsculo dos Deuses, O Inferno na Terra ou Testemunha de Acusação, para mencionar apenas três filmes seus) com o seu cinema.

Fred MacMurray despe o fato do paizinho de família para se transformar no ingénuo e, ao mesmo tempo calculista personagem desta trama, como Stanwyck encontra em Phyllis Dietrichson o papel de uma vida. Edward G Robinson… bem, Edward G. Robinson, pese nunca ter chegado ao óscar, é um daqueles vultos que não sabe o que é um mau papel (como Grant ou Rains, contemporâneos que também nunca levaram a estatueta, apesar da mestria das suas actuações). E o filme funciona tão bem que arrisco dizer que calça bem para amantes de cinema e para iniciados, para curiosos e para quem apenas quer passar um “bom bocado”, e este ecletismo é difícil de conciliar com a qualidade onde Pagos a Dobrar se aguenta com bravia. De qualquer forma, não há amante de cinema que possa sair de palco sem ter vivido esta experiência. É que o filme é mesmo bom!

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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