O silêncio que cada leitor traz consigo

Lemos com o que somos. Cada silêncio, cada perda ou alegria altera o modo como as palavras nos tocam. Nenhum livro é o mesmo duas vezes, porque nós também não somos. Ler é sempre um encontro — entre o texto que permanece e o leitor que muda.

A leitura exige algo raro em nosso tempo: lentidão. Exige o intervalo, o espaço entre uma linha e outra, o respiro. Exige o silêncio — não apenas o silêncio exterior, mas o interior, aquele que nos aproxima de nós mesmos. Ler é, de certa forma, um modo de ouvir: ouvir o outro que escreveu, mas também ouvir o que o texto desperta dentro de nós.

O silêncio na literatura é mais do que ausência de palavras. Ele é presença sutil, convite à imaginação. Está nas pausas, nos espaços brancos, nas entrelinhas. É ali que o leitor participa da obra, completando o que o autor deixou em aberto. O que se cala em um texto pode ter mais força do que o que é dito. A boa literatura não explica — sugere. Ela confia que o leitor saberá caminhar entre o que é revelado e o que permanece em sombra.

Vivemos cercados de ruído. O excesso de informação, de estímulo, de discurso, faz com que o silêncio se torne quase um luxo. Ler, hoje, é ato de resistência ao barulho. É cuidado com a própria mente. Ao abrir um livro, escolhemos o contrário da velocidade: escolhemos a profundidade.

E é curioso como esse silêncio literário também revela nossos próprios silêncios. O livro nos devolve o que trazemos dentro. A leitura se torna espelho — às vezes gentil, às vezes incômodo — que reflete o que não sabíamos nomear. Há quem leia para se encontrar, há quem leia para se esquecer, mas de alguma forma todos leem para se reconhecer.

A relação entre leitor e texto é forma de intimidade. Não há testemunhas. O que se passa ali é invisível, quase secreto. Um parágrafo pode despertar lembranças, abrir feridas, acender esperanças. A literatura, nesse sentido, é das poucas experiências que ainda preservam a solidão criativa — essa solidão fértil onde o pensamento floresce.

Os silêncios da literatura são também lição de convivência. Aprendemos, com os grandes livros, a suportar o que não se explica, a aceitar o mistério das coisas. A leitura nos treina para o que a vida tem de ambíguo, inacabado. E talvez por isso seja tão necessária: ela nos ensina a permanecer humanos, mesmo quando o mundo parece esquecer o que isso significa.

Em tempos em que tudo se consome e se descarta em segundos, abrir um livro é quase gesto subversivo. É dizer ao tempo: “eu escolho permanecer”. É afirmar que ainda há valor no que não é imediato, no que exige atenção, no que pede silêncio.

Ler é forma de resistência e comunhão. É encontro entre duas solidões — a de quem escreve e a de quem lê. Ambas se reconhecem no intervalo entre uma palavra e outra.

E talvez seja nesse espaço invisível, entre o texto e o leitor, que o mundo se torna novamente compreensível. Porque, no fundo, é no silêncio — e não nas palavras — que o sentido verdadeiro das coisas se revela.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Português do Brasil.

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