O nonsense como fenómeno político contemporâneo

Nos últimos anos, a política transformou-se num palco onde fronteiras antes sólidas, entre seriedade e espetáculo, informação e entretenimento, se tornaram difusas. O fenómeno do nonsense político deixou de ser uma incongruência isolada para se tornar parte do quotidiano. Entre declarações contraditórias, promessas impossíveis e personagens públicas que parecem saídas de um guião de comédia, a política contemporânea vive um momento em que o absurdo já não causa estranheza, captando audiência.

É nesse cenário que surge a figura de Manuel João Vieira, (músico e artista plástico e candidato presidencial recorrente) cuja campanha vive da lógica do exagero, do inusitado e do politicamente incorreto. Segundo declarações suas, promete “um psicanalista para cada português, vinho canalizado para todos e fontes de bagaço”.

Tais promessas podem parecer puro teatro, mas funcionam como reflexo de tensões reais na política portuguesa. Vieira sugere que o poder que realmente controla o sistema não é tanto político, mas económico: “as pessoas não percebem que isto é sempre a mesma coisa: o poder económico controla os políticos e o planeta.” Além disso, a sua candidatura já traz um historial de outras anteriores com discursos que misturam crítica política, ironia e performance artística. Por exemplo, numa entrevista recente, afirma que “é o único que sabe prometer mais e melhor”, mas explica que “a mudança não é só mudança e a tradição não é só tradição”, numa espécie de auto­paradoxo deliberado.

O sucesso deste tipo de figura não se explica apenas pelo humor. Prende-se com a saturação do eleitorado que assiste a uma política repetitiva. Quando as promessas soam iguais, o absurdo oferece uma válvula de escape. Rimos de Vieira, mas parte da crítica implícita é ao próprio sistema que legitima discursos cada vez mais performativos.

As redes sociais também desempenham um papel decisivo, veiculando frases desconexas, gafes encenadas ou debates onde a coerência é secundária, tornando-se conteúdo viral. O absurdo, dessa forma, não só diverte, como comunica em tempo real. O que poderia ser descartado como piada acaba por ser reinterpretado como “estratégia de comunicação eficiente”.

Vieira, no entanto, não é apenas um provocador. Evidencia e problematiza questões estruturais. Vê a política tradicional dominada por elites económicas, e a sua “candidatura absurda” pode ser entendida como uma forma de criticar esse domínio. Mas o nonsense, mesmo quando carregado de intenção crítica, tem riscos. Se se tornar apenas entretenimento, pode reduzir o eleitor a espectador passivo. Quando a sátira não é claramente identificada como tal, origina, eventualmente, confusão entre crítica e solução, gerando ambiguidades no discurso público.

A candidatura de Manuel João Vieira funciona, então, como espelho de um problema mais amplo. Não denuncia apenas um candidato, mas revela um ambiente no qual o ilógico se torna plausível, o exagero é visto como autêntico e a incoerência como refrescante. É um sinal dos tempos e, ao mesmo tempo, um alerta.

Perguntar “se nos estamos a rir do candidato ou de nós mesmos como coletivo” deixa de ser apenas uma questão retórica, ganhando pertinência política. Se o absurdo se normaliza, como responder sem perder a lucidez? A sátira pode ser uma ferramenta poderosa, mas o seu papel no futuro da democracia exige reflexão, não apenas riso.

Manuel João Vieira: “Prometo um psicanalista para cada português, vinho canalizado para todos e fontes de bagaço” | Expresso | Actualidade | Artigos e Notícias

Manuel João Vieira: “As pessoas não percebem que isto é sempre a mesma coisa: o poder não é político, mas económico” – Expresso

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Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico.

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