Ainda à espera do Godot?

De repente, as eleições presidenciais saltaram para o centro da agenda política. Era inevitável e só os néscios podiam acreditar que o tema fosse cirurgicamente silenciado até Outubro para não “contaminar” a disputa eleitoral das legislativas.

O calendário eleitoral – eleições legislativas em Outubro e presidenciais em Janeiro – resulta, sobretudo, da vontade do senhor presidente da República, que tinha poderes para marcar as eleições legislativas para Junho, ou Julho, altura em o governo cumpria quatro anos de mandato. Os inconvenientes de não o ter feito são vários: uma prolongada campanha eleitoral para a Assembleia da República; duas campanhas eleitorais em simultâneo; impossibilidade da apresentação do Orçamento de Estado para 2016 nos prazos legais, atraso que se agravará pelas dificuldades que se advinham na formação de um novo governo que beneficie de uma maioria absoluta no Parlamento; diminuição dos poderes presidenciais, na fase final do mandato, nomeadamente o poder de dissolver a Assembleia da República, com a consequente perda de autoridade política para arbitrar consensos. Neste quadro, não é de afastar o cenário de vivermos os últimos meses do ano (senão mesmo entrarmos em 2016), no auge de uma campanha eleitoral para o “mais alto cargo da Nação”, com um governo em gestão corrente, negociações e mais negociações para a formação de um novo governo, sem orçamento de Estado aprovado e com um presidente da República sem poderes, nem autoridade política. Esta pode ser a marca que Cavaco Silva quer deixar da sua passagem por Belém: provocar o caos, antes de fazer as malas, para depois dizer, como é seu hábito, “eu avisei que depois de mim seria o caos”.

O principal partido da oposição – o PS – deixou-se enlear nesta teia urdida pelo presidente da República e pelos partidos do governo. Ao procurar seguir o guião do PSD (e de Marcelo Rebelo de Sousa, que anda em campanha pelo país), cuja estratégia é remeter para depois de Outubro o tema das candidaturas a Belém, os socialistas desbarataram (ou quase) a oportunidade de apresentar, dada a proximidade das duas eleições, uma alternativa conjunta e coerente, tanto ao nível da governação, como da presidência da República. Tão grave como isso, caiu numa perigosa indefinição, permitindo durante demasiado tempo a ilusão de que António Guterres podia ser o candidato socialista. Estiveram muito tempo à espera de Godot, o que deu asas às várias “capelinhas” no interior do partido que, por interesses comezinhos, iam avançando com nomes de possíveis candidatos alternativos, os quais nunca mostraram o menor interesse pelo cargo, como Jaime Gama, ou António Vitorino. Estas manobras de diversão chegaram ao ponto de ilustres socialistas proporem, lá para Outubro ou Novembro, eleições primárias no partido para a escolha do candidato do PS, como se, entretanto, a Terra deixasse de girar. Num tempo de elevada intensidade mediática, era impossível afastar da agenda política a escolha do candidato presidencial até às eleições legislativas. A apresentação de Henrique Neto como candidato e, sobretudo, a disponibilidade de Sampaio da Nóvoa para se candidatar obrigam o PS a tomar uma decisão muito mais cedo do que António Costa desejaria. A importância do cargo presidencial e a experiência dos últimos dez anos de cavaquismo exigem ao PS ousadia e decisão política em vez de jogos florentinos.

O descontentamento e o desencanto dos cidadãos com os partidos que sustentam o regime, senão mesmo com o próprio regime democrático, sobejamente provado pelos níveis de abstenção, por um lado, e pelos sucessos eleitorais de candidatos “independentes” em eleições presidenciais, europeias e autárquicas, por outro, deviam ser motivo suficiente para as nomenclaturas partidárias deixarem de viver em circuito fechado, no Parlamento ou noutros corredores do Poder e perceberem, de uma vez por todas, que um cidadão sem filiação não é filho de um Deus menor. Antes pelo contrário. Se insistirem nesta tecla vão ter muitos amargos de boa.

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