Legislativas 2015 – Uma Questão de Bem Superior

Há cerca de três anos comecei a dizer, em pleno início de efeitos da austeridade e de grande contestação, que não seria assim tão linear haver uma radical mudança nas eleições de 2015 e que, muito provavelmente, iríamos viver algo único, um empate técnico. As eleições do último domingo revelaram muitas coisas que são importantes de ter em conta, algumas até simpáticas, outras algo perigosas. O empate não ocorreu, é verdade, mas também não esteve muito longe disso. No entanto, contra as expectativas de muitos, o país que votou não quis mudar radicalmente o caminho que estamos a percorrer.

Talvez mais importante que o país que votou é, precisamente, o país que optou por não o fazer, tenha sido por consciência, por desânimo no sistema ou por pura desresponsabilização. Mais uma vez, a abstenção superou os números das últimas legislativas, colocando-se em cerca de 43%. Em relação a este ponto, defendo que, em democracia, e ao contrário do que alguns andam para aí a dizer, vivemos nesse sistema, as revoluções não se justificam e, em última instância, representam golpes de Estado. Ainda que não concordemos com um sistema, mudá-lo não pode ser feito, quando as mais básicas liberdades estão totalmente ao nosso alcance, de fora para dentro, mas sim de dentro para fora, mobilizando um povo e levando-o à mudança. Sim, também foi assim que as ditaduras foram criadas no início do século passado, mas também é assim que se constroem os sistemas mais justos.

Poupem-me, velhos do Restelo à espera de Dom Sebastião, a demagogias de que temos vivido em ditadura nestes últimos anos, nomeadamente a velha história da ditadura do capital, pois o que temos vivido são tempos únicos que exigem novas visões, novas posturas e novas vontades. Acredito que foi isso mesmo que os resultados das últimas eleições nos vieram pedir, mas o que se revelou nessa noite, a meu ver, foi muito mais interessante.

Os resultados são os que conhecemos. A Coligação PSD-CDS ganhou as eleições, diminuindo em muito os resultados alcançados nas últimas eleições legislativas, algo que era para lá de expectável, até porque, a julgar pelas redes sociais, a coligação, se tivesse 10% de votos, seria muito. No entanto, esta é talvez a primeira ilação que temos de tirar, a de que o Portugal real não está nas redes sociais, está nas ruas e não atrás de computadores, e esse Portugal real nunca foi radical nem inconsequente. Pelo contrário, sempre foi, talvez até, para muitos, excessivamente, ponderado. Podemos culpar o sistema de distribuição de mandatos ou outra coisa qualquer, mas a realidade é que foi a Coligação quem conseguiu o maior número de mandatos e, como tal, tem toda a legitimidade constitucional para governar.

É neste aspecto que, a meu ver, surge a primeira revelação da noite eleitoral, algo que não surpreende, mas mostra que o problema do sistema não está na direita ou na esquerda, mas sim na vocação de algumas áreas para as verdades absolutas, nomeadamente as suas. Note-se que, rapidamente, das alas mais à esquerda, Bloco de Esquerda e CDU, começaram-se a ouvir vozes algo contraditórias com a suposta luta pela legitimidade, pela justiça e pela coerência. Nos seus discursos, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa falaram de uma maioria de esquerda com legitimidade de governar. Com tais afirmações, a democracia para os partidos à esquerda do Partido Socialista passou a ter regras próprias, muito reveladoras das suas filosofias baseadas na constante postura do “contra” e da ruptura.

A segunda grande revelação da noite é a de que, apesar de tudo, a velha ideia da vinda de um salvador da pátria, algo muito português, é verdade, que foi totalmente focalizada num António Costa sem força nem ideias concretas e bem explicadas ao país, ainda demasiado preso ao PS de Sócrates, é algo que começa a cair. Acredito que, numa sabedoria quase inconsciente, o povo português começa a desligar-se, por fado ou desânimo apenas, da necessidade de se agarrar a uma espécie de tábua de salvação, uma resolução vinda de fora, uma idealização de um salvador. No entanto, este é o primeiro passo, mas ainda falta o segundo, o de compreender que a mudança do país passa pela tomada de consciência de cada um de nós enquanto parte integrante de uma sociedade, com um poder muito próprio e único. Na verdade, este é o problema que ainda falta resolver em Portugal, cuja origem está bem antes da ditadura, o do assumir de um poder pessoal, o da diluição da identidade num pessimismo que nos é muito característico, numa desresponsabilização da nossa própria responsabilidade. É o fado que carregamos, por escolha própria, nas nossas costas, a triste história de um povo que já foi grande, que já deu mundos ao mundo, que lembra tais tempos com a palavra que mais o identifica, a saudade.

Por isso, António Costa e o Partido Socialista, sem dúvida, foram os grandes derrotados da noite, não perante Portugal, mas perante si mesmos, pelo que se tinham proposto, pelo que tinham manifestado que era o caminho que queriam seguir. O golpe de misericórdia, a meu ver, colocou-se no momento em que António Costa caiu na casca de banana colocada por Passos Coelho, quando lhe perguntou se viabilizaria um Orçamento de Estado de um governo da Coligação sem maioria absoluta. Para além disso, a Costa faltou paixão, faltou empatia, simplesmente afastou Seguro e achou que, face à constante onda de contestação ao governo, seria um caminho de passadeira vermelha. Contudo, esqueceu-se que é ao povo que cabe dar a última resposta e que o povo está cansado de mentiras e falsas promessas, sacrifícios duros sem resultados, mas que esse mesmo povo quer mais dos seus dirigentes, sem deitar abaixo tudo o que já foi feito. Por isso também, António Costa sabe que à sua esquerda não há partidos em que os portugueses confiem totalmente para compor um governo e que, no momento em que tentasse fazer uma aliança com eles, o PS iria começar a definhar e a contestação popular iria subir de tom.

A vitória que Passos Coelho obtém para a Coligação é o resultado da sua obstinação, focalizada para algo positivo, não aquela que o fez, tantas vezes, cometer erros simples e básicos na governação, como manter determinados ministros, como insistir em determinadas fórmulas. No entanto, a mensagem que o povo português deixou nestas eleições tornou-se muita clara, e esse será o grande desafio da Coligação.

Ao contrário do discurso que tanto se está a ouvir nestes dias, juntando à “realidade” das redes sociais onde tanto se insiste no mesmo, para os portugueses, os que votam, claro, os que continuam a acreditar que algo se pode fazer de diferente, esquerda e direita já não fazem sentido, estão obsoletos e precisam de ser revistos. Em Setembro de 2012, já no início da contestação popular ao Governo PSD-CDS, no primeiro artigo que escrevi para o Repórter Sombra, escrevi precisamente sobre a desactualização da divisão ideológica política no mundo em que vivemos . A mensagem que os portugueses transmitiram foi simples. Chegou o tempo de largar os egos insuflados e de pensar primeiro no país, nas suas necessidades, ainda que subjacentes a ideologias, mas focadas, acima de tudo na realidade do país. Por isso, PSD e CDS ganharam estas eleições e têm a legitimidade de constituir um governo, mas serão obrigados a negociar, a ouvir, a decidir em consenso, a procurar um equilíbrio. Se o irão conseguir fazer, esse é o caminho que iremos observar. Para bem de todos nós, esperamos que sim.

No entanto, o nosso sistema, aparentemente, não está feito para governos minoritários. Estamos repletos de egos políticos, de todas as áreas ideológicas, que se esquecem que são eleitos para governar, não para se governarem. No governo ou na oposição, a sua ânsia continua, desde há muitos anos, é sempre a mesma, ter o poder. Contudo, como há muito digo, a realidade política dos próximos anos, talvez décadas, é a que hoje começa a ser manifestada aqui entre nós, a da negociação, a do consenso e do trabalho conjunto entre ideologias, entre partidos, em prol de uma só questão: o bem comum do povo. Em todos os espectros ideológicos existem ideias boas, válidas e que, com o devido trabalho, podem ser aplicadas. É preciso que cada área dê o seu contributo e, à força a quem foi dada a legitimidade de orientar o caminho, a base da negociação. Parece difícil, parece utópico, mas é a realidade em que iremos, cada dia mais, viver.

O Bloco de Esquerda foi, para mim, uma das grandes surpresas e um dos grandes vencedores deste acto eleitoral, ganhando força negocial e alimentando-se de um eleitorado tradicionalmente PS, desagradado e que não via nos socialistas a alternativa de outros tempos. No entanto, ao contrário do CDS, que sempre foi um partido do arco da governação, ponto charneira em muitas situações, o Bloco de Esquerda, através de Catarina Martins, demonstrou que apenas fez um lifting de marketing, moderando o tom de voz, mostrando um ar mais simpático, agradando a mais gente, com um braço direito muito valioso, o de Mariana Mortágua, estrela dos últimos tempos. No pós-eleições, o Bloco de Esquerda voltou a mostrar o porquê de não ser um partido de governo, entregando-se a um discurso de uma esquerda vencedora, embora ela esteja claramente dividida, tentando seduzir o PS para formar uma alternativa de esquerda, mas esquecendo-se que, ainda sem os resultados dos círculos da emigração, quatro mandatos, os dois partidos têm juntos o mesmo número de mandatos que a Coligação, necessitando de outra força para poder ter maioria absoluta. Contudo, mais uma vez, a divisão que a esquerda tem, nomeadamente em termos ideológicos, não o permite fazer sem grande contestação, sem uma disrupção dum eleitorado de centro que é mais ponderado e que tem uma posição muito bem sedimentada.

Duas outras questões foram muito importantes nestas eleições. A primeira é a da eleição de um deputado pelo PAN – Pessoas, Animais e Natureza, reveladora de uma nova consciência por parte dos portugueses, sobre questões que vão para além de dinheiro, finanças e défice, mas sim de questões que, embora pareçam paralelas, estão a ganhar força junto do povo, como as questões com os animais e a preservação do meio-ambiente. Mais do que um simples lugar no Parlamento, o PAN, provavelmente, ganhou uma posição negocial que, em muitas situações, pode ser importante. A segunda questão importante é o crescimento do número de mulheres no parlamento, demonstrativo de uma mudança de postura social e do reconhecimento do papel da mulher, da sua importância e da necessidade da sua participação no desenvolvimento do país.

Muitas mais são as conclusões que poderíamos tirar, mas, a meu ver, a principal mensagem destas eleições é muito clara e simples. Há uma necessidade de mudança, não só em termos de ideologias mas, acima de tudo, em termos de postura. Já não faz sentido basearmo-nos em esquerda e direita ou qualquer outro tipo de divisão. O que está a ser pedido é que haja um compromisso de todos para um bem comum, que ultrapasse as ideologias e que se transforme em consenso e respeito mútuo, símbolo de uma maturidade social e política que já se começa a exigir de Portugal. Há muitos factores a serem corrigidos, muitas questões que têm de ser pensadas, não em ciclos de quatro ou de oito anos, mas de base, de raiz, com um entendimento comum e global. Os portugueses estão cansados de, a cada ciclo político, haver mudanças generalizadas, pedindo, claramente, uma visão a longo prazo, estratégica, profunda. Para que isso possa acontecer, são os egos políticos que têm de cair e serem substituídos por verdadeira postura de serviço perante a nação, perante o país. Não é mais uma questão de direita ou de esquerda, de PSD ou de PS, é uma questão de bem superior.

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