Renascimento

A vida é pautada pelo compasso do quotidiano. Poucos são aqueles que esperam que, de um momento para o outro, o ritmo possa ser brutalmente interrompido. O Acidente Vascular Cerebral (AVC), a maior causa de morte em Portugal, aparece como um ladrão na noite, à procura de roubar a liberdade e a autonomia, outrora dadas como adquiridas.

− Que idade tens, Raul?

− 10, 20, 30, 40 e 50 é a minha idade. Se não for assim, já não consigo lá ir. Tive de arranjar este sistema. É assim que o meu cérebro funciona.

As vítimas de AVC vivem o desamparo, a dor, a resistência numa luta inglória, mas sempre movidas pelo amor e responsabilidade dos seus cuidadores. Cada caso é um caso, mas há que desenredar a complexidade da experiência humana que envolve o AVC.

«Só 30% dos sobreviventes de AVC têm o tratamento recomendado», assim foi dito por uma jornalista no Jornal Expresso.

Investigações revelam que, no Sistema Nacional de Saúde (SNS), em Portugal, existem abordagens díspares para a reabilitação das vítimas de AVC, devido à variedade de métodos de tratamento para cada paciente. Apesar de haver muitos caminhos no sentido da reabilitação, somente alguns deles são realmente eficazes. Esta situação ressalta o desequilíbrio e a ineficácia do sistema, beneficiando uns com tratamentos superiores e de resultado célere em detrimento de outros.

Acredita-se que, após sair do coma, a recuperação seja imediata, mas não é bem assim.

− Achamos que acorda, e está tudo bem, e começa a falar, […]. O despertar do Raul foi abrir os olhos.

Ao acordar, o que antes era um corpo vibrante e autónomo torna-se refém de si mesmo. A mão não responde, a fala confunde-se, os pensamentos dispersam-se e a sensação de impotência é avassaladora. As vítimas de AVC encontram-se imersas numa realidade estranha e desoladora. Não é apenas o corpo que está ferido, mas também a alma. O caminho a percorrer é uma incógnita.

Do lado da vítima estão os cuidadores, muitas vezes familiares próximos. Enfrentam um desafio que não escolheram, mas que lhes foi imposto pelas circunstâncias. Esses cuidadores improvisados assumem o papel central na vida das vítimas de AVC, desempenhando tarefas para as quais não têm orientação ou apoio, muitas vezes sem ajuda de assistentes sociais. O desamparo dos cuidadores é silencioso e cresce à medida que a exaustão se instala, desfazendo as suas vidas pessoais. Sentem-se abandonados.

E o que se espera do sistema de saúde?

De que forma a sociedade pode contribuir?

O sistema de saúde, apesar dos seus esforços, muitas vezes não consegue oferecer o apoio necessário. As instituições estão sobrecarregadas e os serviços de reabilitação são insuficientes ou inacessíveis para muitos. É um vazio que abre um buraco no tecido social. A sociedade tende a esquecer-se destas pessoas, enclausuradas nas suas casas, presas à sua condição, desbravando lutas de batalhas invisíveis, onde os heróis nunca são lembrados.

Resta-lhes a luta pela reabilitação.

Sendo a recuperação um processo longo e doloroso, constatam-se progressos notáveis para uns e uma realidade estagnada e frustrante para outros. As sessões de fisioterapia, a terapia da fala, os exercícios cognitivos são o centro da sua vida. Cada pequeno avanço é uma vitória do seu herói, mas a cada retrocesso, o golpe é duro.

Sozinhos precisam de aprender a lidar com o desamparo emocional.

Além do físico, o esgotamento emocional corrói lentamente. Os sentimentos de frustração, raiva e tristeza acompanham tanto as vítimas como os cuidadores.

− Tu não estás cansado?

− Não. Tudo o que seja para melhorar, eu faço.

As relações familiares são testadas até ao limite. A maioria dos cuidadores sente-se sozinho, sem apoio psicológico e carrega um peso que parece impossível de suportar. É como se tentasse segurar uma tempestade num copo de água, com as ondas de emoção prestes a transbordar a qualquer momento.

Posto isto, na teia complexa da vida, o AVC é um nó difícil de desatar.

As vítimas e os cuidadores são heróis silenciosos. Lutam contra a corrente num mar de desafios. É fundamental que a sociedade reconheça e valorize este combate, que ofereça mais apoio e compreensão. Afinal, o desamparo pode ser mitigado com empatia, recursos adequados e uma rede de suporte sólida. Só assim poderemos transformar o desânimo em esperança e, eventualmente, em recuperação significativa e duradoura, de forma, a que a qualidade de vida seja restabelecida e o futuro possa ser encarado com otimismo.

Nota: Os pequenos diálogos são baseados em testemunhos reais.

Nota: Este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico

Share this article
Shareable URL
Prev Post

As infinitas dicas para viver bem

Next Post

Livros para as Férias – do PIAGET…

Comments 8
  1. Parabéns pela crónica, infelizmente bem real. Nesta leitura revi um passado semelhante para ajudar o meu pai. Foi exatamente assim… as conquistas são lentas e as ajudas exíguas. Um processo onde contamos connosco, e só!

  2. Muito emocionante e há tantos heróis destes entre paredes. Força para os cuidadores e que estes apelos cheguem a quem de direito, para haver esperança e melhor tratamento nestes casos.

  3. Um artigo bem elaborado e esclarecedor.
    Só quem passa por cuidar e ser cuidado consegue compreender as mudanças, inseguranças e desgaste físico e emocional.
    Precisamos de cuidados profissionais e de estarmos atentos à nossa saúde. Convém prevenir. Nem tudo está ao nosso alcance e silenciosamente o AVC chega. Façamos o que pudermos, por nós e pelos outros.

    1. Leonilda, muito obrigada pela tua preciosa apreciação. O desgaste é enorme. Precisa-se de mudanças urgentes, pois só assim notaremos o progresso.

  4. Excelente artigo, é tão pertinente. Também conheci essa realidade de perto, no final da vida do meu avô.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

A Nigéria e o OLX

Os tempos são de crise e está na moda procurar segundos donos para objectos que já não nos servem, mas que ainda…

Filho de um padrão!

Não são os padrões que nos definem, somos nós que não nos conseguimos definir. A ilusão de que temos tudo sob…