O Lado Negro do Petróleo (1/2)

Ainda que bem recebida por inúmeras famílias e empresas espalhadas por todo mundo, tem causado espanto a descida acentuada e abrupta do preço do petróleo. No entanto, uma leitura mais atenta e documentada sobre as idiossincrasias desta matéria-prima permitirá entender melhor o porquê de tal queda e dos factores que influenciam a sua cotação.

Apesar das muitas teorias avançadas na tentativa de explicar tal evolução – umas mais plausíveis que outras – a verdade é que o preço do “ouro negro” obedece a condicionantes, que, regra geral são ignorados, pela opinião pública, que atiram por terra todas as ideias pré-concebidas (intencional, ou levianamente veiculadas).

Comecemos pela bitola do preço do crude, que chega a ser mais referenciado nos boletins de informação que o preço dos combustíveis: a sua cotação nos mercados de futuros. Não há nada mais enganoso, para a opinião pública, que enfocar a atenção nesta cotação. Por quê? Muito simples. Todos sabemos que hoje em dia, com poucas centenas de euros, qualquer pessoa pode abrir uma conta de trading e transaccionar seja que activo for, incluindo o petróleo cotado nos principais índices de referência, através de instrumentos derivados (futuros, CFDs, warrants, por exemplo). Para esse preço, normalmente do contrato de futuro com a maturidade mais curta, (1) concorrem não só as opiniões especulativas da miríade de pequenos “apostadores”, como também de pesos-médios e, sobretudo, dos grandes tubarões do mundo financeiro, que movimentam milhões de contractos por dia que valem milhões de barris de petróleo. Agora, interrogue-se o leitor, quantos destes milhões de barris efectivamente trocam de mãos, ou quantos é que são realmente entregues ao titular destes instrumentos derivados?! Se pensou em “nenhum”, não terá errado por muito. Já agora, quantos barris de petróleo é que o leitor consome por dia? Ou por mês? Da matéria-prima, tal e qual? Nenhum. Certo? “Ah! Mas abasteço o automóvel todas as semanas…” Ok, mas isso é outra coisa. Já lá iremos…

O que se quer dizer com esta chamada de atenção? Que a cotação que releva para a economia mundial, e mais concretamente de qualquer país, que não seja produtor e exportador de crude, não é a dos instrumentos financeiros.

Retomando a questão levantada atrás sobre o consumo de barris de petróleo. Se esta fosse colocada a uma empresa “petrolífera”, obviamente a resposta seria outra. E o preço a que “adquire” a matéria-prima para transformá-la em combustíveis, por exemplo? Será a dos mercados financeiros? Não. Então, por que é que os porta-vozes das empresas “petrolíferas” vêm sempre justificar-se com a “cotação nos mercados internacionais” para fazer flutuar o preço dos combustíveis?

Aprofundemos o tema “empresas petrolíferas”. Na realidade, o uso desta expressão para definir as empresas que “trabalham” com petróleo revela-se demasiado vaga. Neste meio, o mais normal é o leitor enumerar as empresas integradas que abarcam todas as fases compreendidas entre a prospecção de “ouro negro” e a distribuição de combustíveis. Não obstante, pelo meio há operações como a extracção, depuração, transporte, refinação, até chegar às estações de serviço. Empresas que abarquem todas estas fases não são muitas, a nível mundial. Trata-se de organizações colossais, tecnologicamente muito avançadas, que empregam milhares de pessoas em todo mundo, cujos quadros estão pejados de profissionais altamente qualificados nas mais variadas áreas do conhecimento, que geram mais dinheiro que a maioria das economias mundiais e que se fazem valer dos argumentos mais convincentes para “persuadir” as elites dos países “donos” de importantes jazidas de crude – sobretudo, daqueles em vias de desenvolvimento, e sem capacidade de investimento público, nem meios tecnológicos para extraí-lo (2) – para recebê-los de braços abertos no seu terraço. Quando uma representação destes titãs bate à porta para discutir a possibilidade de extrair petróleo no “quintal” destes países menos apetrechados nunca vêm dispostos a negociar muito. Além das prendas de “cortesia” para os “anfitriões”, trazem com eles investimento, postos de trabalho, pagamento de royalties e de impostos. Em troca, negoceiam contractos de exploração de muito longo prazo e, um preço marginal balizado pelos barris de petróleo extraídos. Se a cotação nos mercados internacionais servir de alguma referência, será, principalmente, para indexante do cálculo dos royalties e dos impostos a pagar no país abençoado pela existência de “ouro negro” no seu território, ou eventualmente para rever os preços por barril contratualizados.

Por isso, quando as empresas “petrolíferas” invocam a cotação internacional do preço da matéria-prima como justificante para fazer variar o preço dos combustíveis, não estão a fazer mais do que navegar o desconhecimento do consumidor de combustíveis na matéria. Aliás, se os mercados de instrumentos financeiros indexados à cotação do petróleo servem para alguma coisa, para além de especular, é para fazer cobertura de risco. Com isto se pretende dizer que, ao contrário do que querem fazer querer à opinião pública, as empresas petrolíferas não estão expostas ao risco de evolução da cotação do crude, muito menos no curto prazo. Se se atentar na evolução do preço internacional da matéria-prima, ao dia a que este artigo foi redigido, a queda de quase 2/3 do seu valor expresso em dólares desde Junho, não teve igual repercussão nos preços dos combustíveis, por exemplo. Ainda assim, as empresas de distribuição de combustíveis só os baixaram para não quebrar esse nexo de causalidade percepcionado pelo consumidor e evitar que este se “aventure” em explorar e/ou aprofundar formas alternativas de diminuir a sua dependência dos produtos derivados do petróleo.

Do que se expôs até aqui, pretende-se ajudar a desmistificar a maioria do frenesim mediático que gira em torno da evolução daquilo que os boletins informativos designam pela “cotação internacional do crude”. Primeiro, porque a inter-relação entre o petróleo – activo financeiro – e a economia real não é não é assim tão relevante, pelo menos para o consumidor comum. Segundo, as razões explicativas que alguns “pseudo-especialistas” insistem em debitar nos meios de comunicação social com base nos fundamentos do crude – de âmbito temporal alargado – têm (muito) pouca validade para explicar dinâmicas de preço técnicas. Isto é, específicas dos mercado de derivados cujos volumes de transacção são maiores – futuros e/ou opções – e para cúmulo, de curto prazo. É um erro comum e ancestral tentar racionalizar realidades desconhecidas sem fazer uma abordagem sistemática.

Antes foi feita referência aos fundamentos do petróleo. Que fundamentos são esses?

Resumidamente, o petróleo é uma matéria-prima que :

  • se encontra no subsolo: em terra firme, ou no oceano;
  • mais próximo da superfície e em zonas em que “basta perfurar o solo que ele brota,” ou em zonas remotas e de difícil acesso, cujo processo de extracção tem necessariamente de ser mais sofisticado logo, mais dispendioso;
  • cuja quantidade disponível se desconhece (ainda que se admita que seja escassa);
  • geograficamente, não se encontra igualmente distribuído: ao que se sabe, nos dias de hoje, está mais concentrada em algumas zonas do globo;
  • não é homogénea: há crude mais leve, mais puro e, por isso, mais facilmente refinável, e outro mais “pesado,” cuja refinação se revela mais difícil.

Relativamente ao mercado da matéria-prima, propriamente dito.

Do lado da oferta:

  • o ritmo de extracção (produção) é mais ou menos estável – embora com tendência ascendente – nos países desenvolvidos;
  • a capacidade marginal de produção – a que pode flutuar no curto prazo – está concentrada na Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP): países cuja única (ou principal) fonte de riqueza é a exploração e exportação do ouro negro e cujos “estados” só sobrevivem com as receitas fiscais desta indústria;
  • embora entre os países emergentes, sejam os respectivos estados os proprietários do crude, são na maioria dos casos, as multinacionais do petróleo que recolhem os benefícios económicos de explorá-lo;
  • ainda que se admita que as jazidas de petróleo sejam escassas, a verdade é que os progressos técnicos nas áreas das engenharias, geologia, etc., têm levado ao descobrimento e subsequente exploração económica de novas e generosas jazidas de crude.

Do lado da procura:

  • a tendência dos últimos 20-30 anos é claramente altista, com o crescimento fulgurante registado, sobretudo, nos países Asiáticos, com destaque para a China: crescimento económico, crescimento industrial, maior poder de compra, crescimento do parque automóvel, mais tráfego aéreo, tudo contribuiu para a explosão da procura de produtos derivados do petróleo;
  • embora nos países em vias de desenvolvimento o consumo seja mais desenfreado, nos países ocidentais a intensidade do seu uso tem-se reduzido bastante, principalmente desde o choque na oferta do final dos anos 70. Isto é, ao longo das últimas décadas, as economias desenvolvidas têm procurado diminuir a sua dependência do petróleo forjando tecnologia cada vez mais eficiente e/ou com fontes de energia diversas.

Quanto ao “mercado” propriamente dito:

  • ao contrário daquilo que é dado a entender não há uma cotação “internacional” do crude, propriamente dita: há gigantes multinacionais que sob concessão dos estados de determinados países, extraem e comercializam o petróleo que, como foi esclarecido acima, é uma matéria-prima heterogénea;
  • aquilo que é cotado nos mercados financeiros é um índice que serve de referência aos especuladores, aos indivíduos/empresas que, por qualquer razão, lhes convém cobrir o risco operacional de lidar com produtos derivados do petróleo (empresas de transporte de passageiros e/ou mercadorias, empresas químicas, refinarias, etc.) e no cálculo dos royalties e/ou impostos a cobrar às empresas petrolíferas por parte dos governos dos países que dependam fortemente do crude para financiar os orçamentos de estado (independentemente se servem para financiar a compra de armamento, ou artigos de luxo);
  • como não há propriamente correspondência entre o volume de barris de petróleo colocados no mercado real e aqueles que são transaccionados nos mercados financeiros não se pode dizer que haja muito rigor na quantidade de barris de petróleo produzida a nível mundial por unidade de tempo (mês, ano, etc.). Por outro lado, mesmo no seio da OPEP, há variadíssimos precedentes de ruptura das quotas de produção acordadas.

(Continua)

(1) Até um determinado dia da semana, convencionado pela bolsa onde o contrato é transaccionado – e de conhecimento público – recorre-se ao contrato que expira no mês seguinte (n+1). Depois dessa data convencionada será n+2.
(2) Cujo território abençoado pela existência de ouro negro no seu subsolo contribuiu para economias completamente desarticuladas e incipientes sem qualquer forma de geração de riqueza que não seja pelas contrapartidas que decorrem do contratualizado com as empresas “petrolíferas”. A implantação de regimes despóticos só favorece os interesses destas companhias em claro detrimento das populações destes países que subsistem em condições no limiar da sobrevivência.
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