A arte maior de um escritor não está (só) em encontrar uma boa história para contar, mas uma boa forma de contar uma história. Foi a isto que me soube este livro – A Promessa – de Romain Gary. Uma vida que se tornou extraordinária pela sua participação na II Guerra Mundial, pela expectativa depositada pela mãe sobre os seus ombros, bem como pela influência que esta exerceu sobre si.
A vida de Gary tem ingredientes romanescos: foi piloto e diplomata, venceu duas vezes o Prémio Goncourt quando o regulamento permite apenas um galardão por escritor, foi casado com a actriz Jean Seberg (Bom dia, Tristeza e O Acossado), tendo sido traído quando ela se envolveu com Clint Eastwood e, na sequência, desafiou o actor para um duelo, que o próprio declinou; no fim, fechou a vida como tantos romances: disparou um tiro contra si mesmo no ano seguinte ao do suicídio da própria Seberg.
Se em grande parte este livro deveria ser uma degustação para os psicólogos mais freudianos, tal não é o “trauma da mãezinha”, o “menino da mamã” ou a “mãe dominadora” que atravessa toda a obra, a verdade é que nele coabita também uma bela homenagem à mãe do autor e aos esforços por este encetados para cumprir as suas expectativas. Ele não esconde o facto de tal carga lhe ter roubado a personalidade (pela descrição e motivações das vivências relatadas), mas a escrita de Gary é tão fluida que desculpamos quase tudo, pelo prazer de ler.
Senti a história planar sobre a leitura e, como acontece com tantos outros autores, desejei ter esta capacidade maravilhosa de transformar o banal em interessante, cativar pela forma um conteúdo menor ao ponto de, no final, e talvez seja esse o grande feito d’A Promessa, perceber que a própria matéria deste romance autobiográfico é tudo menos menor; é um hino à vida, um trabalho quase épico sem darmos por isso enquanto sobrevoamos as suas páginas, uma assumpção de intimidade ao mesmo tempo poética, realista e grandiosa.
Não foi com esta obra que Gary venceu os Goncourt, mas algo captou a minha atenção na estante da livraria aquando da reedição pelos Livros do Brasil. O grafismo, com o avião sobre o nome do autor e esse título tão enigmático que buscamos ao longo de toda a obra (afinal, de que promessa se trata?) ou as cores; a curiosidade de, após uma breve pesquisa, entrar num dos nomes maiores da Literatura Europeia do séc. XX quando o nome nada me dizia; ou esta ambição tão concreta e irreal ao mesmo tempo, que a sinopse nos lança, de procurarmos um sentido para a vida, esta procura paradoxal por algo mais do que a simples e maravilhosa benção de nos ser permitido viver e testemunhar a existência. Provavelmente todas estas vicissitudes encontraram naquele momento da minha vida – Abril de 2023 – uma razão maior para bater à porta do inesperado e abrir sem esperar permissão, deixando o instinto atropelar a vontade. E assim cumpri A Promessa.
[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]