Em Portugal, a violência doméstica continua a ser um dos maiores dramas sociais do nosso tempo. Ano após ano, assistimos a vários relatos de histórias de mulheres agredidas, controladas e, inevitavelmente silenciadas. Muitas não sobrevivem para contar a sua história. Outras vivem uma prisão invisível, mascarada de rotina familiar “normal”.
Não me refiro apenas aos números em relatórios policiais oficiais, mas às vidas despedaçadas pela normalização da violência dentro de casa. É um flagelo persistente, tantas vezes escamoteado por vergonha, medo ou indiferença, que exige ser colocado no centro do debate público.
É neste contexto que o filme “Isto Acaba Aqui”, vem expor este desespero em forma de drama lançado em 2024 e, inspirado no romance da autora Colleen Hoover ganha maior relevância.
Este filme não se limita apenas a narrar a história de Lily Bloom e da sua relação com Ryle, um neurocirurgião que oscila entre charme e brutalidade. A obra serve sobretudo de espelho para a nossa própria realidade, expondo como um ciclo de abuso se perpetua, como o amor se transforma em armadilha e como a ausência de amor-próprio pode aprisionar qualquer um.
Assistir ao filme “Isto Acaba Aqui” é mais do que consumir entretenimento, é repensar e atuar imediatamente para uma realidade que se perpetua escandalosamente no tempo na nossa sociedade.
É ser confrontado com a pergunta incómoda: quantas Lilys vivem hoje ao nosso lado, sem voz e sem saída? O cinema, neste caso, funciona como catalisador de reflexão.
Obriga-nos a olhar para o que preferimos ignorar, desafia-nos a reconhecer que o silêncio é cumplicidade e que só a coragem de dizer basta pode quebrar o ciclo.
Diria que nos confronta de forma exemplar para verdades difíceis de “digerir”.
Em alternância com a mensagem subjacente de “sobrevivência”, assistimos a uma história de amor construída dentro da teia da violência verbal e física, revelando a fragilidade humana e sobre a brutalidade silenciosa que tantas vezes se esconde atrás da porta fechada de uma relação
Lily Bloom, a protagonista principal, é apresentada como alguém em busca de um novo começo. Lily suporta a dura bagagem de uma infância marcada pela violência doméstica e encontra em Boston a oportunidade de reconstruir-se, de renovar-se como mulher e como ser humano. O encontro com Ryle, um neurocirurgião bem-sucedido e aparentemente o par perfeito, poderia muito bem ser o início de uma história romântica convencional.
Mas, é precisamente o contrário – este filme não se rende ao cliché. Expõe a contradição de um homem que, por trás do charme e da inteligência intelectual, esconde um lado sombrio, abusivo e tóxico.
A narrativa de “Isto Acaba Aqui” é clara quando revela que o amor não justifica a dor, que a paixão não deve servir de desculpa para o desrespeito. Lily é forçada a enfrentar um dilema cruel, ao perceber que a relação em que mergulhou repete os mesmos padrões da violência repetida que presenciou em criança. O ciclo, que parecia inevitável, confronta-a com uma escolha impossível: permanecer ou libertar-se das amarras do “medo”.
Posso adiantar que o filme está bem conseguido e não poupa o espectador ao desconforto de assistir ao drama traumático vivido pelas personagens.
As cenas de maior tensão são construídas com realismo, sem cair em exageros gratuitos, o que lhes confere um peso ainda maior.
A violência, aqui, não é um mero artifício narrativo, mas um espelho perturbador da realidade de tantas mulheres. Mais do que denunciar, a história procura humanizar, ao revelar as contradições internas de quem ama, mas precisa antes de tudo aprender a amar-se primeiro.
Enquanto obra cinematográfica, “Isto Acaba Aqui” não se limita a seguir o enredo do livro original de Colleen Hoover. Transpõe para o ecrã uma atmosfera que oscila entre a esperança e a ameaça constante. O cenário urbano de Boston onde decorre a narrativa reforça essa dualidade: uma cidade que acolhe, mas também é o palco de momentos de dor e decisão.
A interpretação da personagem principal Lily oscila num coração em constante tumulto, que transmite vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, uma força interior silenciosa que cresce à medida que a narrativa avança.
É um filme que questiona o espectador a ponderar: quantos de nós reconhecem os sinais de uma relação abusiva? Quantas vezes o silêncio foi cúmplice da repetição de padrões tóxicos? E, sobretudo, como se quebra um ciclo que parece tão enraizado?
Estas perguntas ecoam para lá da sala de cinema, provocando uma reflexão necessária numa sociedade que ainda naturaliza como prática normal demasiadas formas de violência física e verbal.
“Isto Acaba Aqui” não é um filme para se ver de forma ligeira. É um retrato doloroso, mas essencial, que expõe as fissuras escondidas atrás de sorrisos e promessas, e que lembra que nenhum amor vale a perda da dignidade. Trata-se no fundo, de uma narrativa sobre libertação, sobre o poder transformador da decisão de dizer basta.
É esta talvez, a sua maior força: mostrar que o fim de uma história pode ser, afinal, o início de outro ciclo de uma vida.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico