A ditadura da utilidade

Serve para nada? Então, quero.

A rapariga já engolia os últimos pedaços do cone do gelado, quando me apercebi da sua presença. Depois, ficou sentada no banco do jardim. Os braços rodeavam um joelho e os olhos vagueavam pelas três árvores vizinhas. Cruzava e descruzava as pernas, deixava-se escorregar ou esticava-se e os olhos sempre a passearem pelas três árvores vizinhas. Durante meia hora, observou os esquilos que escalavam as nogueiras. Talvez contasse o número de nozes que cada um conseguia meter na boca (treze, segundo um anúncio da televisão). Não fez trabalhos de casa, não olhou para o telemóvel, não se encontrou com os amigos. Durante aquele tempo, apenas existiu. Ah, e entregou-se a uma atividade completamente desnecessária: observar esquilos. Talvez fossem os beijos pintados no cabelo loiro, muito, muito rente, que fizessem dela uma daquelas pessoas raras que ainda exaltam o valor do que não serve para nada.

Fora do jardim, vivemos sob o jugo da utilidade. Um mundo obcecado por produtividade, eficácia e retorno imediato. Manuais, métricas, metas, objetivos, otimização do tempo, resultados. Tudo precisa de ter uma função na engrenagem que produz — a eterna pergunta «Para que serve?» —, caso contrário deve ser eliminado. Gera prestígio, poder, fama? É útil. Acumula dinheiro? Ainda mais.

No sistema educativo, importam os saberes e competências que permitam um ganho financeiro — apesar de os gregos chamarem scholé, de onde surge a palavra escola, ao tempo livre para pensar, criar, contemplar.

No mundo do trabalho, interessa a produtividade que leva ao lucro. Estudos, projetos, orçamentos, reuniões. Coisas úteis. No plano pessoal, também cada ação precisa de um propósito, uma recompensa, um retorno tangível. Ou seja, útil.

Vamos respirar um pouco? No meio desta lufa-lufa, conseguiremos, certamente, acomodar um monte de coisas inúteis cheias de utilidade para o nosso bem-estar. E devemos fazê-lo, para não nos afundarmos no esgotamento, no vazio.

Fabiola Gianotti, a física que dirige o CERN, fez estudos clássicos e artísticos no secundário e defende uma escola para formar melhores pessoas: mais cultas, mais éticas e mais livres. À sua semelhança, o filósofo Nuccio Ordine, no manifesto A Utilidade do Inútil, defende que útil é “tudo aquilo que nos ajuda a tornarmo-nos melhores”.

Apesar da lógica dominante que tudo transforma em função, todos temos uma lista de prioridades sem utilidade prática: ouvir uma história sem propósito, escrever um poema que ninguém lerá, pintar um quadro que não foi encomendado, rabiscar num guardanapo, usar um perfume, apaixonar-se ou ficar a olhar para o nada. Só porque sim. Um ato de liberdade que deveria ser prescrito pelos médicos. Um elogio a algo sem objetivo, porque a inutilidade também justifica o mundo. São estes momentos de abrigo, de pausa no ruído, que nos mantêm vivos, permitem o deslumbramento, a criatividade, despertam emoções inesperadas.

Vamos comprar um poeta, de Afonso Cruz, é talvez a maior ode à beleza do que não serve para nada, cujo valor é preciso redescobrir. Os poetas sempre souberam que, afinal, nada é mais essencial do que aquilo que escapa à lógica da utilidade. Almas inteiras necessitam do inútil.

Gostaria de saber com que outras coisas aparentemente inúteis a rapariga dos beijos pintados no cabelo costuma sonhar.

Este artigo foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.

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Comments 1
  1. Palmas para ti, Paula, que chegaste ao cerne das vivências, decorrentes de escolhas e pressoesysociais e pessoais.
    Parar, gastar tempo a olhar para o mar, uma flor, o nada útil é urgente.

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