O despertador toca.
Desperta pela quinta vez consecutiva. A dificuldade para levantar é demasiado elevada. Hoje seria um bom dia para ficar na cama entre os lençóis quase seculares.
Sente-se dormente, pesado e mole. Uma gripe espreita, está a caminho, de certo.
O céu está cinzento coadunando-se à disposição humorística dele.
Ele, que respondia pelo nome de Zé.
Zé, apenas. Nada mais.
Levanta-se preguiçosamente, coloca-se à frente do espelho e o pensamento recorrente e ordinário de aparar a barbar surge novamente. Não a apara pois a falta de vontade não o permite. Amanhã.
Após os procedimentos habituais e matutinos, Zé desce cada degrau com o dever quase cumprido por estar cada vez mais próximo do carro. Veículo com mais de 20 anos que, de quando em vez, dá-lhe dores de cabeça quando a ignição fica a meio gás e o motor de arranque não executa a missão como mandam as regras.
A panela de escape cumprimenta a vizinhança à passagem de Zé.
Um espirro. Mais um. Outro. Os olhos estão pesados e lacrimejantes. Segue viagem até ao estacionamento do café rotineiro para a sua segunda dose de cafeína.
– Estás com uma cara, Zé! – observa o dono do estabelecimento.
– Gripe. – responde-lhe com um sorriso forçado.
– Não vás trabalhar… Fica em casa! Ou… Vai consultar um médico! – sugere o dono, ironicamente.
Zé esboça novo sorriso forçado com um “não tenho tempo” e sai em direcção ao carro. Repara que as calças estão a ficar gastas. Deveria comprar outras assim como um novo par de sapatos. Nota, também, que o seu relógio de pulso parou. Prometeu, a si, que à saída do trabalho compraria um par de calças, um par de sapatos e, talvez, um relógio.
Outro espirro. A dor de cabeça abraça-o forte e lancinantemente.
Arranca no seu carro com o ruído da panela de escape a acompanhar, a um nível orquestral, os espirros de Zé.
Este vira à esquerda e avista o parque de estacionamento do hospital público. Estaciona o carro quase de forma homérica devido ao congestionamento excessivo no parque. Depois de conferir as portas trancadas manualmente, segue direcção à porta automática do hospital. Esta dá-lhe as boas-vindas.
Há uma fila ainda mais comprida do que se poderia imaginar após o vislumbre daquele parque de estacionamento. A expressão facial das pessoas adoentadas e combalidas em espera para dar entrada eram pouco convidativas.
Zé pára no hall de entrada. Sente-se quente. Está febril. Começa imediatamente a tirar o casaco notando que a camisa merece, também, ser substituída.
Neste momento, Zé tem três entrada de acesso.
A primeira opção é para a recepção da entrada e fazer o agendamento para uma consulta de emergência.
A segunda opção é a entrada restrita para os assistentes operacionais do hospital.
Por último, a terceira, é para o pessoal médico de serviço, entrada restrita,
também.
Qual direcção irá escolher?
Lamentavelmente, a resposta óbvia e seguindo o raciocínio da história, seria a primeira opção.
O Zé está tremendamente doente, em estado gripal avançado, segundo os sintomas descritos. Seria prudente ser consultado e aceitar uma prescrição médica para uns quantos analgésicos e anti-inflamatórios.
A resposta está errada.
Será a segunda opção. Ao longo da pequena história, o nosso Zé fora peremptório no que toca com o trabalho e respondera, ao dono do café, que teria de ir trabalhar. As responsabilidades assim o obrigavam.
Não. Esta reposta, também, está errada.
Surpresa!
Afinal, o Zé é médico!
Benzam-se e surpreendam-se! O nosso Zé é medico!
Dr. José, portanto!
Aqui, nesta história fictícia e totalmente descabida da realidade, o Zé, afinal, é o Dr. José do Hospital Público de um qualquer local à vossa escolha.
Num universo paralelo, onde a aparência, o porte e apresentação em nada traduzem sobre nós; onde o carro que conduzimos não revela, em nada, o nosso estatuto social; onde as roupas trajadas não descreve a nossa dignidade; onde os restaurantes que frequentamos não revela a essência de cada um; onde a quantidade de viagens realizadas não sejam contabilizadas e julgadas caso o número de vezes tenham apenas sido de um algarismo; onde as jóias que nos ornamentam não expõe, a nu, a nossa posição social perante terceiros; onde o trabalho não gera um scanner de habilidades e competências ante outros.
Numa realidade alternativa onde não haja a necessidade faminta de comprar o último modelo de uma gama de luxo de uma marca qualquer de carros.
Numa realidade alternativa onde qualquer aquisição ou compra seja feita para nós e não em prol dos outros.
Numa realidade alternativa onde as marcas não prevaleçam, de longe, nos requisitos mínimos para se ser aceite e respeitado.
É surreal e, até (!), vergonhoso o nosso Zé ser, eventualmente, num universo paralelo, o nosso médico de família.
Seria insano o Zé ser advogado. Seria completamente ilógico o nosso Zé ser arquitecto. Ou engenheiro. Ou médico!
Vivemos agarrados ao que temos e ao que compramos. Queremos mais e mais, principalmente, para mostrar de bandeja e, de forma gritante, que somos alguém.
Vejamos o que cada um de nós possui. O que temos, o que faz falta, o que faz realmente falta?
Estamos todos no mesmo barco, viajando com a brisa das aparências, futilidades, títulos e status quo da humanidade.
Olha-te ao espelho e diz-me o que vês.
Descreve-te, baixinho.
Num universo paralelo… Quem serias?
No mundo real… Quem és?
É isto. Somos isto. Uns mais. Outros menos. Contudo e no fundo, o pensamento é semelhante a cada um de nós. Uns podem, outros não.
Mudemos pensamentos, julgamentos e críticas, por um segundo que seja.
Não confundamos desmazelo ou descuido.
Compreendamos implicitamente.
Por vezes, aí, está o cerne da questão.
E o mesmo cerne, a mesma essência, esteve em Jack Kerouac quando disse:
Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não gostam de regras. E não respeitam o status quo. Podes citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que não podes fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.