O corpo que a Moda insiste em limitar

Ir às compras nunca é apenas ir às compras. Para quem foge do padrão idealizado, vestir-se é um gesto carregado de tensões e expectativas invisíveis. Cada cabine de prova, cada arara de roupas, cada manequim é um lembrete silencioso: a Moda escolhe quem merece existir nas suas vitrines. Quem veste um manequim “fora do padrão” sabe que não é o corpo que não serve à roupa, mas que a roupa foi projetada deliberadamente para excluir corpos.

Durante décadas, a moda atuou como guardiã de um padrão quase inatingível: magro, alto, proporcional, muitas vezes branco. Quem escapava a essa régua invisível era tratado como exceção, e não como participante legítima de um mundo de estética e expressão. O resultado foi uma geração inteira aprendendo a se encolher, a se adaptar, a acreditar que não havia espaço para si no espelho que a sociedade oferecia. O provador deixou de ser apenas um lugar de escolha: tornou-se território de constrangimento, vigilância e avaliação silenciosa.

Hoje, felizmente, alguns avanços são inegáveis. Marcas se arriscam em coleções inclusivas; influenciadoras gordas conquistam visibilidade e mostram, todos os dias, que estilo não tem número. Elas não fazem apologia à gordura: afirmam algo mais profundo, que a moda frequentemente esquece: o corpo gordo existe, é diverso, possui estética, desejo e capacidade de expressão. Entretanto, essa abertura ainda convive com uma cultura profundamente resistente. Muitas lojas tratam o tamanho “plus size” como um apêndice, como se ele fosse uma concessão e não uma necessidade básica. O “XL” não é apenas um número maior no cabide; muitas vezes, parece projetado para minimizar o corpo, para apagá-lo em vez de celebrá-lo.

A moda não ignora os corpos gordos por falta de tecido, técnica ou criatividade. Ignora, porque carrega em si uma lógica de exclusão simbólica: se você não veste o padrão, não pertence ao ideal de beleza que a indústria quer vender. É um mecanismo de poder. O vazio nos cabides, a ausência de alternativas, a disposição das coleções — tudo comunica: “você não cabe aqui”. Cada gesto, por mais sutil que pareça, reforça a mensagem de que beleza e visibilidade são privilégio de poucos. O corpo que não se encaixa deve se esconder, improvisar soluções ou aceitar a invisibilidade.

O impacto dessa exclusão vai além da estética. Afeta autoestima, percepção de identidade e relação com o próprio corpo. A experiência de comprar roupas se transforma em um julgamento constante, e a roupa deixa de ser abrigo ou expressão para se tornar instrumento de pressão social. Cada prova de roupa que não fecha, cada peça que não se encontra, carrega uma pequena violência silenciosa: a lembrança de que a moda não vê, não considera, não deseja aquele corpo.

Ainda assim, fissuras surgem. O crescimento de vozes gordas no universo fashion — modelos, estilistas, influenciadoras, editoriais independentes — demonstra que a exclusão não é destino inevitável, mas escolha. Cada desfile, cada campanha, cada publicação que celebra diversidade desafia a narrativa dominante e cria espaço para que a moda seja, de fato, linguagem e expressão, não punição e invisibilidade.

A moda ignora os corpos gordos porque ignora o desconforto de confrontar a própria crueldade. Mas esse silêncio começa a ser rasgado. Cada vez que falamos, cada vez que contamos nossas histórias, cada vez que denunciamos a exclusão, quebramos um pouco do feitiço. Porque o corpo que eles insistem em não ver continua aqui, vivo, resistente. E não há tecido que consiga apagá-lo.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Português do Brasil.

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