Um dos meus herdeiros (à data do acontecimento) tem 11 anos. Tem as suas cenas, os seus gostos, e para orgulho de maman, é todo bichos, coisas viscosas e muito hands on: vê um nudibrânquio (vulgo lesma do mar), pumba mão naquilo! Lagarta peluda ou bicho-pau no muro, nariz encostado e a ponta do dedo que não resiste a toc toc… é isto. Ora, no dia em questão, um dia de semana, jantar tomado, rabos no sofá, não apetece mais notícias nem do Mundo nem caseiras, zapping seletivo, portanto: nada de filmes, espreitadela rápida aos canais de culinária (quando eu era pequena babava com as fotos do livro de receitas da Miréne “O Tesouro das cozinheiras”. Passei a pobreza aos miúdos que também se saciam pelos olhos… mea culpa), e parou-se onde se queria: num documentário da vida animal. Parecia uma coisa normal, igual aos 198457534057 que já vimos.
Não era.
O narrador era um experiente realizador de documentários que se vê afogado num período de profunda depressão. Alguém que tem tudo, uma família que o ama e a quem ama de volta, uma carreira de enorme sucesso… mas é quase sempre assim, não é? Perdeu “aquele” brilho.
O chamamento do mar. É nas idas à praia, àquela praia sul-africana (uma floresta de algas, “kelp forest” é a denominação destes locais) que elege como local de mergulho pela dureza e força das vagas que desafia o corpo e se obriga à reflexão. Num desses dias é arrebatado por um encontro que mudaria a vida dele. Perfeitamente camuflado entre conchas e pedrinhas, um polvo. Inicialmente tímido, medroso e desconfiado, o molusco marinho intriga-o. É um ser estranho, dele se diz ser extremamente inteligente. Quão inteligente? É dado um passo, há um toque entre ambos. Ventosas que acariciam pele. Acariciam para depois se revelarem surpreendentemente fortes.
Há um momento de fascínio mútuo, um misto de curiosidade e medo entre ambos. Um toque, uma interação, um clique. O mergulhador pratica apneia, não usa botija e tem que subir à superfície. Quando volta a descer não espera encontrar o polvo, mas ei-lo em todo o seu esplendor a aguardar mais conversa.
“E se eu voltar todos os dias?” – são considerações do próprio que encontrou uma narrativa para aqueles dias e um objetivo imediato, a curto prazo.
E é assim, em mergulho sem ar de reserva, no oceano profundo, turbulento, que a viagem se revela também interior, agitada, deslumbrada e muito, muito de dar, mas ainda mais de receber.
“My Octupus Teacher” de Phillippa Erlich e James Reed, Netflix, 2020 é, na minha humilde opinião, das peças de Vida Selvagem mais extraordinárias captadas em vídeo. O conteúdo das imagens, as palavras despudoradas de quem sabe que abrindo a intimidade dos próprios sentimentos está a escancarar as portas de um dos maiores flagelos da Humanidade contemporânea: a saúde mental.
Se os que estavam alapados no sofá “leram” as mesmas mensagens? Provavelmente não. Sinto-os crianças curiosas, animadas e entusiasmadas, não creio que processem o conceito de depressão… mas o resto? Ah sim! A descoberta da suprema importância do outro, mesmo que seja um animal – se calhar, principalmente por ser um animal! Outro ser vivo, um ser senciente. É uma expressão muito recente. Senciência é a capacidade dos seres de processarem sensações e sentimentos de forma consciente. É, por outras palavras, a capacidade de experienciar perceções conscientes do que acontece e do espaço envolvente.
“A sabedoria do polvo” em português, venceu o Oscar de melhor filme documentário em 2021. Nesse ano recebeu 14 nomeações, dos Bafta ao Festival Internacional de Cinema Documental de Guangzhou e arrecadou 10 galardões!
Preparem-se para as camadas que este documentário tem. Preparem-se, mesmo. E deixo o spoiler: a Natureza é cruel mas também é Mãe.
Por ser dia de semana (e eu ser uma tirana assumida!) o documentário ficou a meio. A parte mais difícil deste filme ainda está para vir. Eu sei como se vai desenrolar a história e nem por isso sei como vou reagir. Mas estou com maior expectativa em relação às reações dos miúdos, confesso. Conto aprender muito com eles e com a forma como as crianças encaram as coisas.
Mas acima de tudo tenho que me mentalizar que durante uns meses não vai haver Polvo à Galega nem à Lagareiro cá em casa! Buááááááá. Desejem-me sorte para os dias sombrios que se avizinham.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico
