Ser mulher e outras formas de cair

Maria do Mar acredita que a duração dos seus cabelos é feita de água, sal e areia, como as canções do Jobim.

Vive submersa de insatisfação, quase sempre pernoitando no lado errado do silêncio. Conhece bem o ninho dos pesadelos, urdido de abismo e insónia. Lá dentro, a inquietação, o espírito a suplicar por mais azul.

Maria do Mar mergulha na frescura da água todos os dias, eucaristia matinal. Mas o corpo, feito orquestra de tíbias, fémures, metacarpos, metatarsos, costelas, clavículas e maxilares, exige-lhe mais, uma outra melodia. Pede-lhe altitude. 

Sente-o epidermicamente: precisa de levantar voo, nadar o oceano do lado avesso.

Maria do Mar dá por si muitas vezes junto à falésia, com os braços estendidos, a ensaiar um voo planado. Passa horas atenta à fisionomia dos pássaros deslizantes lá na distância. Imita-lhes a graciosidade com os membros contorcidos, ágeis, numa dança disforme que parece dirigida por um qualquer realizador francês.

Nesse dia, sentada no chão a despentear um malmequer, sentiu o tórax dilatar-se. Era a irreverência. Não pensou no peso do corpo e muito menos se lembrou da lei da gravitação universal do Newton. 

Levantou-se, passo desafogado, olhos inundados de novidade. Sem esforço, empurrou o planeta com os pés e ergueu-se na leveza poética de um salto.

Bateu os braços e voou.

Maria do Mar floria em lágrimas grossas, enquanto abandonava o chão. Ganhou velocidade na subida, atónita com esse banquete de atmosfera que a beijava. No alto, descreveu uma curva ainda atabalhoada e deixou-se planar por entre essa bebedeira de azul, o mar e o céu.  Respirava pelos poros da pele, sentindo o corpo desempoeirado, enfim seu, forrado de ousadia e desassossego.

Afinal, era isto a liberdade.

 

Américo acordou ao lado de uma puta de feições tristes, ligeiramente atrasado para a confissão com o frei Boaventura.

Despertou-a com austeridade, nauseado com o perfume amargo do esperma e da infâmia. Com o rosto inerte e desabitado, desabituado da emoção, apontou a saída. Pousou-lhe o olhar nas coxas uma última vez enquanto acendia um cigarro altivo — a nicotina caminhando dos lábios até aos pulmões e dos pulmões até àquele desprezo pelo mundo.

Américo concebe-se como homem hirto, circunspecto, palavras poucas e bem pesadas. Vive com esse saudoso silêncio-de-vinte-e-quatro-de-abril entalado na gargantinha de fascista. Só deus-nosso-senhor-glória-ao-altíssimo sabe a falta que um grande estadista lhe faz, ai o que será de nós sem uma mão firme que nos abençoe.

Sai para a rua como habitualmente, o cachimbo cínico em riste, a moralidade na ponta do nariz. Caminha com a sobriedade de quem nunca emprestou os pés a danças. Chega, por fim, à carrinha da caça — depois de ter aprendido a fazer pontaria aos pretos na Guiné, não quis perder o hábito à espingarda — e arranca rumo à igreja.

Américo nunca se chegou perto do perigoso lirismo das coisas vãs do mundo. Conduz à beira-mar, sem vislumbrar por um segundo que seja a beleza da estrada tornada serpente a espreguiçar-se no contorno do oceano. Ia pensando nos buracos do asfalto até que, de repente, uma sombra flutuante no horizonte atlântico o fez estremecer. 

Percebeu com assombro: uma mulher a voar.

Com as extremidades do corpo dormentes, tentou tornar mais nítida essa apocalíptica visão. Via, perplexo, um sol de fim do mundo a bailar-lhe na pele torrada, nua, blasfema. Não podia aceitar que uma mulher desafiasse assim a sua recatada condição de mulher. Que uma mulher se atrevesse assim a desenhar nas alturas a sua própria eternidade. Se arriscasse assim a namorar o impossível, feita divindade.

Deus é pai, cromossoma y.

Américo sentia-se chamado, em nome da moral, a responder àquela afronta à patriarcal ordem das coisas. Habituado a servir a nação, não lhe restavam dúvidas sobre a missão que lhe competia. Sentiu a repugnância a rebentar-lhe na boca, dentes cerrados, olhos postos nesse festim herético que acontecia perto das nuvens mais altas.

Carregou a caçadeira que trazia na bagageira sem sequer reparar no som metálico que esfriou o chão e o tempo. Elevou a arma à predatória linha de visão e encontrou-a na mira, elevada de insolência, já tão vazia de futuro. Nem uma gota de suor vacilante: disparou com estrondo.

Cai ao mar uma silhueta tecida de silêncio.

Américo inverteu a marcha, de novo rumo a casa. Deus não haveria de se importar que se confessasse só amanhã.

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