O poder da arte urbana

Já reparaste em como um simples mural pode transformar um espaço urbano? Uma rua num bairro de periferia, um lugar sem interesse arquitetónico ou histórico, um viaduto que antes passava despercebido, torna-se de repente um ponto de encontro, uma fotografia instamagrável, uma conversa iniciada. Em tantas cidades do mundo, os graffitis e os stencils deixaram de ser considerados vandalismo para se tornarem verdadeiras atrações turísticas. Passeios guiados por bairros periféricos, visitas a murais icónicos, rotas temáticas… tudo isso comprova que a arte de rua conquistou um lugar legítimo no coração urbano.

Para mim, a arte urbana é mais do que pintura nas paredes: é uma manifestação viva da identidade coletiva, um reflexo sincero — e muitas vezes brutal — da alma de uma cidade. A arte urbana é um espaço de liberdade, onde a criatividade não pede licença. Cada traço, cada cor, cada palavra gravada nas paredes abandonadas transmite uma mensagem, um grito, uma provocação. Ela representa a linguagem dos que não têm palco, dos que escolhem o muro como manifesto.

Na obra do artista Nomen (aka Nuno Reis, 1974-2022), representada na fotografia da capa, vemos uma mulher negra a retirar a máscara branca do seu rosto. Este mural representa simbolicamente o estigma territorial e o racismo sofrido pelos residentes da Quinta do Mocho, em Loures.

Uma cidade que acolhe a arte de rua é uma cidade viva. Uma cidade que ouve. Que se permite ser múltipla, diversa, contraditória até. Porque a arte urbana também incomoda. Ela pergunta, desafia, obriga-nos a olhar duas vezes. E talvez seja aí que reside a sua verdadeira beleza: no desconforto criativo que provoca. Quantas vezes me vi parada diante de um mural, tentando decifrar a intenção por detrás da imagem representada, e perguntando-me o que o teria levado o autor a escolher aquele canto da cidade como tela?

Para além do seu valor estético ou simbólico, a arte de rua tem um papel profundamente político. Não é por acaso que tantos murais carregam críticas sociais, denúncias, protestos silenciosos (ou nem tanto). Em tempos de polarização, de crises e de injustiças, os muros tornam-se tribunas. E os artistas, mesmo anónimos, tornam-se vozes que ecoam o que muitos sentem, mas poucos conseguem expressar. A arte urbana traz cor, sim, mas traz também questionamento, identidade, humanidade. É uma forma de expressão crua e honesta, acessível a todos, democrática por natureza.

Outros artistas de arte urbana famosos incluem o português Vhils, conhecido por esculpir rostos nas paredes; o britânico Banksy, conhecido pelos seus murais com mensagens políticas e satíricas; o português Bordalo II que recicla lixo nas suas esculturas de animais e o brasileiro Eduardo Kobra, que cria murais gigantescos e coloridos.

Há também uma poesia inerente à efemeridade da arte urbana. O que hoje existe, amanhã pode já lá não estar. E talvez isso nos ensine algo sobre o tempo, sobre a impermanência das coisas, sobre a beleza que existe no transitório.

Por isso, da próxima vez que passares por um mural de rua, olha com atenção. Escuta com os olhos. Pode ser que naquele fragmento de parede haja mais verdade, mais emoção e mais coragem do que dentro de muitas galerias de arte comerciais.

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