A redescoberta de modelos e personagens negras — frequentemente deixadas no anonimato ou reduzidas a tipos raciais — tem aberto novos horizontes na história da arte. Os modelos brancos retratados na pintura, foram sempre identificados nominalmente. Todos sabemos quem foi a mulher que serviu de modelo à Mona Lisa, ou o nome da Rapariga com o Brinco de Pérola, mas não sabemos quem foi o homem negro que posou para o retrato do Rei Gaspar de Rembrandt…
É essa desigualdade que tem motivado os investigadores a recuperar as identidades apagadas ao longo dos séculos na arte. As representações de personagens negras foram historicamente moldadas por estereótipos raciais e frequentemente suprimidas, reduzindo-as a rótulos como “negro” ou “mulato” em vez de reconhecê-las com identidade própria.
Nesse contexto, destaca-se a história do retrato de Madeleine, uma jovem escrava de origem africana representada pela artista francesa Marie-Guillemine Benoist (1768–1826). https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010065532
Há mais de dois séculos que o quadro está exposto no Museu do Louvre, ao lado de outras obras famosas, com o título “Retrato de mulher negra”. Pintada em 1800, a jovem é retratada com uma postura altiva e serena, olhando diretamente para o espetador — um gesto inovador para o seu tempo, como afirma a autora Anne Laffont no seu livro “Uma africana no Louvre” (Ed. Bazar do Tempo).
Os estudos desta autora indicam que a retratada era uma escrava, chamada Madeleine, nascida na ilha de Guadalupe, que foi levada para França pelo cunhado de Marie-Guillemine Benoist. Embora pouco mais se saiba sobre a sua vida, sabe-se muito sobre a artista que a retratou: ela foi uma das raras mulheres admitidas nos círculos artísticos do Louvre.
Poucos anos após a abolição da escravatura em França, decretada em 1794, a artista escolheu retratar uma mulher negra com dignidade e individualidade, num tipo de pose tradicionalmente reservada às mulheres brancas. Esta sua decisão, feminista e revolucionária, tinha implicações panfletárias. As cores utilizadas — o branco do turbante e do manto, o azul da manta, o vermelho do cinto — evocam também a paleta da bandeira francesa, encarnando simbolicamente os ideais da revolução francesa.
A obra causou grande polémica quando foi exibida no Salão de Paris de 1800. Era algo fora do comum — e provocador — atribuir ao retrato de uma mulher negra o mesmo grau de nobreza e solenidade dos retratos aristocráticos. Apesar disso, o sucesso da pintura garantiu à artista diversas encomendas, inclusive da família Bonaparte, até que ela se resignou a abandonar a carreira artística, para não ofuscar o marido, cuja posição política se consolidava.
Hoje, o Retrato de Madeleine , além de ostentar outro título, assumindo a importância da mulher retratada, é considerada uma obra fundamental para as novas abordagens sobre raça, género e representação na história da arte. A figura de Madeleine opõe-se aos estereótipos visuais e sociais que historicamente limitaram a humanidade das mulheres negras, e o seu reconhecimento recente encarna um esforço de reescrita crítica e de integração da consciência negra na história da arte.
NOTA: Este artigo foi escrito segundo as regras do novo acordo ortográfico.
