Uma árvore no meio de um rio interminável – Parte I

Havia uma árvore mesmo no meio daquele rio interminável. Todas as noites, antes de ir dormir, ele sentava-se no pequeno banco de madeira à porta de casa e fumava um cigarro, observando aquela árvore quase invisível no meio do nevoeiro. Uma sombra, um fantasma. Nunca ninguém tinha conseguido voltar de lá.

Soprou o fumo do cigarro e semicerrou os olhos, desconfiado, o olhar preso no inimigo. Era uma árvore de muitas lendas: uma árvore da sorte e da vida, um tesouro enterrado por celtas, o esconderijo de um eremita, a alma antiga de uma feiticeira. Prometia eternidade e sabedoria e desejos concretizados. Mas para ele era uma árvore de mentiras. O seu pai, sessenta anos antes, tinha lá ido e não voltara. Tinha jurado voltar. Ele, de dez anos, tinha visto o pai remar até desaparecer, até ser engolido pela neblina. Tinha esperado dias, semanas, meses à porta daquela casa, cada minuto com a sensação que o pai surgiria a qualquer momento.

Não, para ele aquela era uma árvore de mentiras, de juramentos quebrados, uma árvore-cemitério. Apagou o cigarro na parede de casa e entrou.

Acordou com um barulho. Eram quatro da manhã. Perguntou-se quem estaria de pé naquela hora maldita e naquele lugar maldito. Levantou-se e foi até à porta. Sentiu o Outono na pele, os cabelos despenteados e enfurecidos, o sono a ser lavado pelo frio da nova estação, o barulho das folhas amarelas a voarem à sua volta. Viu-a quase como uma aparição. A criança arrastava um barco que ameaçava desfazer-se a qualquer momento.

“Ei!” gritou-lhe.

A criança olhou para ele por um momento. Uma menina. Olhos gigantes, cabelo curtinho e encaracolado, confiança no corpo pequenino. Continuou a empurrar o barco até à margem. Ele vestiu o casaco e avançou na direcção dela, o passo rápido, a tentar correr, os sapatos a atrapalhar no meio da terra, a idade a atrapalhar a velocidade. O barco chegou à água e a menina meteu-se nele com um salto ágil. Começou a remar com as mãozinhas pequeninas.

“Ei!” voltou ele a gritar quando a viu afastar-se.

Entrou na água gelada atrás dela e alcançou o barco. De forma atrapalhada, entrou, quase com uma cambalhota. Envergonhado, tentou sentar-se. Doíam-lhe os ossos e a pele. A menina olhou para ele surpreendida.

“Onde vais?” perguntou-lhe ele quase sem fôlego.

O cheiro da noite. O som dos grilos e das rãs. Uma pequena lua no meio da escuridão. Ela remava com energia.

“À árvore” ela encolheu os ombros, “vou buscar o meu irmão.”

Ah, outra lenda: a árvore de Deus.

Ele observou-a. Conhecia aquela criança, tinha ouvido a história da família. Não foi capaz de dizer nada. Sempre tinha sabido ouvir os silêncios dos outros. São tão poderosos, alguns silêncios. Sempre tinha conseguido reconhecer os mundos que existiam dentro dos outros. Eram tantas as vezes que carregavam mundos destruídos, mesmo que o corpo continuasse a parecer inteiro. Pensou que estava velho e não era feliz há demasiado tempo, inundado pelo ressentimento e a solidão. Por isso, se tivesse de morrer, bem poderia ser naquela noite, a enfrentar o inimigo e a ajudar uma jovem alma perdida. Pôs as velhas mãos no rio interminável e remou também.

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