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Um copo de cachaça com açúcar

O corpo treme sem frio. Não é suposto esta criança de cinco anos dormir encolhida na sala de estar, no sofá de pele arrefecida, de olhos abertos forçados pela claridade da porta-janela sem persiana, parede comum ao quarto onde o avô ressona barbaridades e a avó reclama porque não fechas a boca enquanto dormes, homem?

Um dia, fui abandonada. Não aquela deserção de pai e mãe que nos deixa órfãos. A ausência inesperada — mesmo por tempo determinado —, dói. Faz-nos tiritar. De saudade. Onde terei errado para me deixarem? Não gostarão mais de mim? Só fizemos o que julgávamos ser melhor, escutei, anos passados, sem citação borgesiana para enquadrar.

Podiam, por favor, ter explicado antes de me largarem sem aviso prévio? Viajaremos sem ti, mas daqui a seis meses regressaremos. Entretanto, ficas na casa dos avós para ires à escola. O tempo passa rápido. Amamos-te muito. Simples, assim. Compreenderia? Não. Espernearia, gritaria, amaldiçoaria santos desconhecidos por os meus pais me deixarem para trás, mas não ficaria a tremer no grito abafado da angústia de não saber o porquê. O silêncio do que se oculta dói mais do que a crueldade daquilo que se diz.

Com a idade dos dedos de uma mão fiquei sem dormir o sono repousado de cria que escuta a respiração apaziguadora da mãe na divisão ao lado. Os ecos dos avós não davam sossego. Voltaste a beber? Deita-te longe. Tens um bafo que não se aguenta! Veste as ceroulas que te constipas.

Ainda o galo não acertava o poleiro para celebrar o começo de um novo dia, já o meu avô puxava o cigarro e enchia a sala de estar (ou melhor, o meu quarto, ou a passagem para a cozinha, ou a saída para a rua, conforme a necessidade ou vontade do morador), com o catarro da tosse.

Quando o corpo se ressentia do cansaço de mais uma noite branca, e ansiava descansar, o despertador, de seu nome António, entrava ao serviço durante a semana ou ao fim de semana. Quem é madrugador não escolhe dias para enxotar as mantas do ninho. Avô, não consigo dormir, confessei, por fim.

Certo dia, enquanto a avó enxaguava a louça do jantar, o avô António puxou-me pelo braço em peugadas de gato até à sala de estar, à noite transformada em quarto onde lençóis improvisados tapavam o sofá — a cama espinhosa da sofredora de insónias. Toma, bebe. Vais ver que dormes melhor.

Um reduzido copo de vidro opaco, metade com líquido transparente, outra parte com açúcar onde eu enterrava a colher de chá e a girava em semicírculos foi o remédio prescrito. Nunca apreciei o aroma, mas gostava de escutar o terrincar doce daquele néctar que me deixava mole, e me deslembrava a mãe a dois mil trezentos e noventa quilómetros de distância.

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