Tendo nascido a 9 de Maio de 1973, não guardei, infelizmente, nenhuma memória da ditadura. Nessa altura, os meus interesses políticos baseavam-se em coisas tão importantes como enfiar as mãos na boca até aos punhos e babar-me e, de vez em quando, manifestar a minha indignação em forma de choros e birras quando o horário das refeições era sujeito a cativações pelo Centeno lá de casa. É, portanto, da mais elementar justiça que eu agradeça, em 2020, a Ferro Rodrigues por me desvendar um cheirinho do regime político autoritário que nunca pude saborear. O meu profundo agradecimento.
Com o país em pleno Estado de Emergência, devido a uma crise sanitária provocada por um vírus mortal, debateu-se no Parlamento sobre as comemorações do 25 de Abril. Enquanto sacudia o bolor dos ombros, Ferro Rodrigues avisou o país que esta data “tem de ser e vai ser celebrada”. Rejeitando as boas práticas seguidas pelos portugueses e sugeridas pela DGS, atirou ainda o jocoso: “Então, nós íamos mascarados para o 25 de Abril?” No fundo, o Presidente da Assembleia da República fez aquilo que qualquer Presidente de uma Assembleia da República de um país democrático faria: encarnar os tiques de um ditador. Em tempos de telescola, foi uma aula bastante proveitosa sobre o Estado Novo. Os Capitães de Abril livraram-nos do fascismo, Ferro Rodrigues livrou-nos da ignorância.
Numa rápida pesquisa sobre a etimologia da palavra liberdade, verificamos que se trata de uma ausência de submissão e de servidão. O problema da liberdade é, portanto, querer ser livre, não ter um proprietário. O que acaba por ser chato para Ferro Rodrigues. E isso parece ser um dos aspectos mais engraçados e irónicos neste caso: alguém que se acha dono do regime da liberdade a querer comemorá-lo. A comicidade parece transbordar quando isso se pretende fazer recorrendo a peculiaridades do regime ditatorial.
Nas primeiras linhas do romance Eliete – A vida normal, Dulce Maria Cardoso escreve: “Eu sou eu e o Salazar que se foda”. Mais ou menos o mesmo que Ferro Rodrigues quis dizer: o 25 de Abril sou eu e os portugueses que se fodam.
Quando o mundo procura de forma desesperada uma vacina para a cura da Covid-19, Portugal descobre que, afinal, a vacina para a soberba talvez seja mais urgente.
Curiosamente e sem que ninguém o esperasse, Cavaco Silva rejeitou o convite para estar presente nas comemorações do 25 de Abril. Aparentemente, por ter medo de contrair o vírus da democracia. Nutro especial estima por pessoas quem têm este espírito cívico e esta lucidez, mantendo-se confinadas em casa, tendo em conta que fazem parte de um grupo de risco: o risco que corremos ao votarmos nelas.