Fazes questão de beber dos copos que ainda têm os meus lábios lá colados. Em noites antigas mordias-me num quase-beijo, devagar, sem pressa, olhando-me nos olhos e invadindo-me, testando o meu desejo. Agora já sabes beber um copo de vinho como quem reza e transformas as noites numa missa pagã.
Ganhaste o deslumbramento das crianças que ainda têm todos os gestos a nascer, sabes viver com a curiosidade na ponta dos dedos, na pele, nas expressões das sobrancelhas. Já te esqueceste que me tocavas nas palmas das mãos para ler onde tinham andado e que me molhavas no teu cheiro para que eu não soubesse tocar em mais ninguém. Mas sabia. E tocava. Tu sabias bem que sempre tinha tocado.
Davas passos silenciosos para os medos e os pesadelos não acordarem e não aprenderem a seguir-te. Enrolavas-te muda nos meus braços, unhas agrafadas ao meu corpo, segurança fingida que eu nunca te quis dar. Agora já percebes que dançar ao ritmo do coração quando está descompassado é a melhor forma de alinhavar o destino, mesmo quando atrais as incertezas e os receios – também eles te ensinaram novas danças.
Quando eu não estava, o peito doía-te menos se adormecesses a olhar para o lado da cama que não era o meu. Não sabias o que fazer com os pedaços de ti que tinham o meu nome. Mas um dia soubeste descosê-los com cuidado e cortá-los violentamente, em bocados tão fininhos que pareciam pó. Desapareceram com o vento. Como tantas vezes eu o fiz. Agora mal te lembras do sabor agridoce da cura e tens orgulho nas tuas cicatrizes.
A porta abria e eu, de olhos fechados, sentia o calor da tua língua pelo meu pescoço, suave, subindo com languidez, deixando um caminho húmido e arrepiado, parecia que contavas os segredos certos à minha pele, numa calma urgente. Só que não abriste da última vez que voltei. O meu ouvido encostado à porta escutou os teus passos indiferentes. Independentes. Aprendeste esses truques de bruxa na minha ausência e agora ninguém é capaz de te queimar em fogueiras.