Todas as noites, pegava na sua raiva e afiava a garganta. Sentava-se na mesa da cozinha e, como quem prepara o jantar, retirava a pele aos momentos dolorosos – descascava-os, cortava-os em pequenas sensações e metia-os na boca. Deixava que passassem pelos dentes, lhe tocassem o palato, saboreava o amargo, rodava-os com a língua e sentia um prazer mórbido quando as arestas lhe sangravam as gengivas.
Quando os engolia, eram um banho de fogo. Podiam dar-lhe azia, náuseas até. Mas era a única forma que encontrara para se defender, para atacar. Porque a raiva deixava-lhe a garganta cheia de lâminas e as palavras saíam dela afiadas, prontas para abrir fendas na pele dos outros.
Também ela tinha cicatrizes do que lhe fora dito. Se alguém lhe tocasse o corpo, perceberia os altos. Mas ninguém tocava. Ela não queria, não permitia, não confiava. Mais do que abrir feridas, essas palavras tinham deixado larvas dentro dela, sementes que cresceram e a deixaram com crenças daninhas, com vermes que lhe mastigavam as alegrias.
Ela podia retirar essas palavras dela, claro. Mas não o fazia. Sabia que era possível, mas não sabia como. Teria de as espremer? Cortar a pele e arrancá-las? Não, não o fazia. Preferia usá-las como armas. Pegar nas balas que lhe atiravam e devolvê-las. O problema era que as palavras que lhe tinham atirado, quando saíam de novo, mais pontiagudas, feriam-lhe a ela também.
Excepto com ela.
Com aquela mulher nada disto funcionava.
Ela não percebia porquê. Não percebia porque é que ficava muda, de voz quente, de jeito inocente quando a via. Tinha visto como os outros também queriam ferir de morte aquela mulher, fazendo pontaria com vocábulos letais e tons cheios de peçonha. Mas ela não se deixava afectar: massajava os ouvidos para se livrar das contracturas que as vozes duras lhe deixavam no corpo, puxava as palavras para fora dos ouvidos e deitava-as no lixo.
Depois sorria-lhe. Encolhia os ombros e sorria-lhe como quem faz um convite. E o sorriso dela deixava-a desconfortável, com o peito tão cheio de coisas estranhas, mágicas, sujas. Queria abri-lo, arrancar essas sensações de dentro dela e deitá-las pela sanita, esfregar bem a pele, sangrar, deixar que o coração lhe escorresse pelo ralo. Os canos que levassem esse caos todo para a fossa. Longe. Porque ela não sabia o que fazer dele.
Não, não queria.
O que queria era arrancar as proibições e fechar os olhos enquanto se atirava para o abismo.
Entretanto, continuaria a afiar palavras com a sua raiva para manter os pés no chão. Ainda só sabia ser assim. Era a única forma de não pensar em tudo o que ela era e não podia ser. A única forma de não pensar em como os lábios daquela mulher,
suavemente,
devagar,
com cuidado,
poderiam retirar-lhe as lâminas da garganta como quem abre uma porta e diz “sê bem-vinda a minha casa”.