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Testamento Vital

Na terra dos meus avós maternos, uma pequena aldeia transmontana com mais pedra do que gente, circula há vários anos um boato (contado à meia voz e disseminado pela inveja) sobre o qual, ultimamente, me tenho posto a matutar. A história remonta a meados da década de 70. Segundo as más-línguas, nessa época, um jovem humilde nascido e criado na aldeia, terá enriquecido subitamente, permanecendo, até hoje incógnita, a origem de tão misteriosa fortuna.

Como poderia um pobre e desinteressante rapaz transformar-se, repentinamente, num milionário? O vazio explicativo ateou a imaginação dos aldeões. “Meteu-se na droga”, diziam uns. “Está a passar meninas para Espanha”, diziam outros. Pese embora a credibilidade de algumas explicações, a que reuniu mais consenso foi a enigmática história do Testamento Alterado.

Segundo esta última versão, na aldeia vizinha, tão pequena e fustigada pelas estações como a aldeia dos meus avós, o jovem teria um parente afastado: um tio velho e rico, doente e solitário. Não se sabe o nome desse parente (como muito convém a um boato bem elaborado), mas confirma-se que vivia tristemente, numa casa tão grande como a sua conta bancária.

O velho estava às portas da morte. Diz o boato que o jovem (que era pobre, mas não era parvo), antes que o pré-defunto soltasse o último suspiro, foi visita-lo a sua casa. Sem escrúpulos, aproveitando-se da debilidade do enfermo, conseguiu que este alterasse o testamento, passando dinheiro e bens para o seu nome. Como o homem não tinha sequer forças para agarrar na caneta, foi o próprio jovem que lhe segurou na mão, impedindo-o de vacilar, enquanto o obrigava a assinar um novo testamento. O jovem enriqueceu e a aldeia inchou de inveja. Toda a gente amuou e ninguém foi ao velório chorar o velho.

Fala-se, por vezes, da tristeza que é morrer sozinho (impossível não relembrar as pessoas que são encontrados mortas em suas casas, depois de meses desaparecidas, sem ninguém dar por sua falta), mas a expressão “mais vale só do que mal acompanhado” parece ser um lema transversal à vida e à morte.

Se tivesse a possibilidade de escolher entre morrer isolado ou na companhia daquele jovem mal-intencionado, certamente que o velho da nossa história escolheria a primeira opção. Melhor ainda, para alguns de nós, seria deixar este mundo rodeado por pessoas queridas, de confiança.

Na década de 70, deixar registado num documento oficial, o nome da pessoa que se pretendia ter por companhia nos últimos momentos de vida, poderia ser considerado uma excentricidade. O mesmo se poderia dizer da opção de assinalar num testamento, os cuidados de saúde que se pretendia (ou não) receber em determinadas situações clínicas. Nessa época, assegurar que a vontade inicial de uma pessoa seria respeitada mesmo quando esta, por razões físicas e/ou psicológicas, estivesse impossibilitada de se expressar autónoma e conscientemente, não era um hábito comum. Porém, os tempos mudaram.

No ano de 2012, a Declaração Antecipada de Vontade (que até aí carecia de simplicidade e enquadramento legal) passou a estar regulamentada no nosso país. Nesse mesmo ano, foi criado o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV). No passado mês de Julho, assistiu-se a mais um avanço com a criação um serviço online, onde é possível recolher informações e efectuar o download do formulário do testamento, para impressão e preenchimento.

Não ser submetido a tratamentos de suporte artificial das funções vitais, não beneficiar de cuidados paliativos, ou tratamentos em fase experimental e recusar/autorizar a participação em ensaios clínicos, são alguns dos desejos que os cidadãos podem agora expressar no Testamento Vital. Contudo, note-se, existe também um item para registo do nome e contacto da pessoa que se pretende ter ao lado, no momento em que forem interrompidos os meios de suporte de vida artificial.

Ao contrário das questões relacionadas com “receber ou não cuidados de saúde”, que foram amplamente analisadas por médicos, políticos, jornalistas e membros eclesiásticos nos vários meios de comunicação social, já sobre o item “Companhia na Morte”, pouco debate se gerou. Tal “vazio argumentativo” poderá indiciar a existência de algum consenso social, quanto à relevância de um desejo que Vasco Graça Moura soube descrever tão bem no seu “Soneto do Amor da Morte”:

Quando eu morrer murmura esta canção

que escrevo para ti. Quando eu morrer

fica junto de mim, não queiras ver

as aves pardas do anoitecer

a revoar na minha solidão.

Quando eu morrer segura a minha mão,

põe os olhos nos meus se puder ser,

se inda neles a luz esmorecer,

e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,

sempre a doer de tanta perfeição

que ao deixar de bater-me o coração

fique por nós o teu inda a bater,

quando eu morrer segura a minha mão.

No final do mês de Agosto, apenas dois meses após a activação do serviço pela RENTEV, já 245 portugueses tinham registado o seu Testamento Vital. A solidão é, de acordo com muitos especialistas, um dos principais males do século XXI. Tendo em conta as características da sociedade actual, não será muito difícil acreditar que os elevados níveis de adesão ao Testamento Vital se devam tanto à vontade de evitar tratamentos de saúde que acarretam um sofrimento desnecessário, como à necessidade de garantir a companhia certa no final da vida.

Não há garantia total que, mesmo realizando o Testamento Vital, a nossa vontade seja respeitada, mas, não vá o Diabo tecê-las, se não queremos terminar a vida como o velho da aldeia vizinha dos meus avós… mais vale prevenir!

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