Há uns tempos, uma voz mais alta chamou-me a atenção numa entediante viagem de comboio. Essa voz vinha de uma senhora que falava ao telemóvel, relatando o caso de uma rapariga que estava noiva e que tinha ficado tetraplégica. Pelo que pude entender, a rapariga chorava e queria romper o noivado. Contudo, o noivo estava contra essa opção, pois amava a rapariga independentemente da sua atual condição física. Ora, o que interessa nesta descrição não é que apontemos o dedo à coscuvilheira que sou, mas sim à natureza humana que tudo isto revela: como seres sociais que somos, temos a necessidade de interacção e, particularmente, de conversar.
Os tópicos têm várias fontes e, nesse dia, a senhora que falava ao telemóvel resolveu pegar no episódio da novela a que tinha assistido na noite anterior. E eu, com o banco ao lado vazio e sem bateria no MP3, rendi-me àquelas imagens ficcionadas. Porque, afinal de contas, os média fazem parte de nós e, já que não nos bastamos a nós próprios, os conteúdos novelescos podem funcionar como um meio perfeito de abstracção.
Por outro lado, a história que relatei comprova mais um aspecto importante: as novelas, através da narrativa estrategicamente construída para prender o espectador ao ecrã, alcançam um público fiel, que quer acompanhar as aventuras e desventuras daqueles que são santos e daqueles que são vilões. Umas vezes, o público pode chorar; outras há em que se irrita; noutros momentos, liberta uma gargalhada. Aliás, é esta a natureza emocional dos produtos de ficção.
Aliado a tal, as novelas ocupam um espaço muito importante no dia-a-dia do público. Fazem parte não apenas das conversas diárias como já vimos, como também implicam que as pessoas se organizem em torno do horário de transmissão da novela.
É por estes motivos que quem escreve, produz e emite este género televisivo deve estar ciente de que tem um poder enorme sobre o público para quem trabalha. Com efeito, um dos mais importantes ensinamentos em torno do ambiente mediático diz-nos que os média são uma construção social. Paralelamente, podemos afirmar que as novelas nos ajudam a construir o mundo em que vivemos.
Ora, logra-se essa construção apresentando-se personagens com determinadas doenças, com certos problemas com a justiça ou que são vítimas de descriminação.
A título de exemplo, a novela “Amor Maior” contou com uma personagem que sofria de esquizofrenia e, assim, o público que a acompanhou teve acesso a um retrato desta doença. Em “Sol de Inverno”, houve uma estória de adopção por parte de um casal homossexual, ao mesmo tempo que se debatia a lei no parlamento. E, em conteúdos ao estilo de “Morangos com Açúcar”, é muito fácil encontrar representações de casos de bullying.
As novelas são, então, um claro meio de transmissão de conhecimento, ao mesmo tempo que entretêm. É por isso que reforço que este tipo de conteúdos tem uma força brutal sobre as percepções que o público desenvolve acerca do meio em que se insere.
Homossexualidade, toxicodependência e pobreza fazem frequentemente parte das tramas. A isto chama-se merchandising social. E este fenómeno deve estar ainda mais vincado nas estórias, já que resulta numa forma primordial de contacto com realidades muitas vezes negadas no dia-a-dia, por falta de desconhecimento.
Aqui, aplica-se o famoso slogan de Fernando Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Isto porque, se ainda há uma miríade de temas que são tabu ou ignorados pela sociedade portuguesa, as novelas logram ser um meio perfeito para abalar preconceitos, enquanto apresentam a actualidade política, económica e social, de uma forma que deve ser exacta.
Entende-se, assim, que as novelas, ainda que muitas vezes sejam vistas como um objecto menor de ficção, têm um potencial enorme de intervenção no mundo. Seja pelas conversas que despoletam, seja pelas perguntas que colocam.