A minha avó guardava ovos de madeira na caixa da costura. E nós divertíamo-nos a brincar com os ovos de madeira que afinal serviam para coser meias. Naquela altura, as meias não eram deitadas fora ao primeiro sinal de desgaste, fosse qual fosse o material de que eram feitas. Os ovos serviam exactamente para isso, para ajudar a coser as meias, a cerzir as malhas. Já ninguém diz cerzir, pois não? É natural que não, deixámos de dar uso às palavras quando a ação a que se referem desaparece. Faz sentido.
No tempo em que os ovos de madeira habitavam as caixas de costura, havia senhoras que ganhavam assim a vida, a fazer do velho, novo. Era um ofício e uma arte. Uma necessidade, já que os recursos eram limitados e ninguém se podia dar ao luxo de substituir o que quer que fosse à primeira contrariedade.
Depois o tempo mudou. Acelerou. A economia alterou-se. A disponibilização de recursos multiplicou-se de forma incontrolável.
Tudo passou a ser descartável, substituível à primeira mazela. Por vezes, até antes disso. A meia rota deita-se fora. As cerzideiras desapareceram.
Outro dia, dei comigo a pensar que fazemos hoje às relações o que passámos a fazer às coisas. Desistimos. Mal um pequeno buraco espreita na zona do dedo grande e nós já fazemos as malas e seguimos caminho sem olhar para trás. Procuramos outro par de meias que nos sirva o tamanho. À primeira vista parece-nos perfeito. Sem borbotos ou falta de cor, mesmo aquilo de que precisávamos (e merecíamos, em abono da verdade!), ao invés daquele velho par que nos aqueceu os pés em tantas noites frias e caminhou connosco em tantas jornadas. Mais fácil assim, do que tentar coser um buraco ou cerzir uma malha, que é coisa para dar uma trabalheira.
O novo passou a ser o afrodisíaco da humanidade. Não encontramos interesse no que foi construído, não valorizamos a história que vivemos. Queremos o que acreditamos ser diferente, eternamente insatisfeitos, acabando invariavelmente por perceber que o brilho inicial desaparece ao fim de poucas lavagens. Não aprendemos, ainda assim, e seguimos em busca de uma outra novidade, deixando para trás o que podia continuar a ser uma história bonita, umas meias moldadas ao pé a proporcionar um conforto que só o uso lhes dá.
Quem me ouvir há-de pensar que sou uma exímia cerzideira. Longe disso. Tenho por vezes vontade de deitar fora as meias esburacadas e sair em busca de umas novas em folha. Meias com outra cor, embrulhadas na promessa (irreal) de se manterem impecáveis para todo o sempre. Mas depois lembro-me dos ovos de madeira na caixa de costura da minha avó. Relembro o sorriso orgulhoso que exibia no fim de um trabalho bem feito e recordo o meu espanto ao ser incapaz de identificar o local onde antes havia um buraco. É então que pego nas meias, nos ovos de madeira e faço o que posso. Mesmo sem grande jeito para a costura, sei que no final ficarei feliz por não ter desistido, muito mais do que se tivesse comprado novo. E sei também que aquelas meias, que comigo partilharam histórias e caminhos, saberão continuar a dar-me o conforto que preciso. Às vezes as meias só precisam de um bocadinho de atenção.
PS – É claro que há meias que não valem mesmo a pena. Nem cosidas, nem cerzidas. Algumas até ainda não têm malhas ou buracos e nós já sabemos que dali não virá conforto de espécie nenhuma. Essas é descartar assim que possível. A qualidade inicial faz toda a diferença.
Adorei este seu trocadilho das meias com as pessoas ao nosso redor! Acredito que sejas realmente uma escritora. hoje buscava um conhecimento sobre ovos de costura e acabei encontrando sua prosa e me deleitei. Obrigada!!!