Era um crepúsculo de primavera chuvosa, as luzes amarelas das janelas espelhavam-se nos passeios e estradas molhados. Vem aí uma tempestade. As gotas gordas e afiadas começam a cair, ouve-se um trovão. Tu não te importavas de dançar à chuva e parecias gloriosa. Os sapatos eram de baile. O teu par agarrava-te, smoking a brilhar com os pingos, o cabelo molhado a cair-lhe na testa.
Decido ignorar-te.
Mentira, não consigo.
Saudades. Saudade do que não fomos.
Existem tantos tipos de saudades. Rodopio à chuva, na vã tentativa de me aproximar de ti. Saudades do que aconteceu, saudades de quem algum dia voltará, saudades dos mortos e dos vivos que sabemos que nunca mais veremos, saudades de lugares que não conhecemos e das histórias que poderiam ter acontecido. As diferentes saudades moem de forma diferente. Caio numa poça suja, tonto de rodopiar. A saudade é um bicho complicado. Atravessa-nos completamente. A minha avó desconfiava de algo que fugia a muitos cientistas: que o sangue, principalmente o português, está feito de saudade – glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas, plasma e saudade.
Com o teu par, nem olhas para mim, que me levanto e sacudo. Dou voltas sobre mim mesmo, de braços abertos e olhos fechados, cara virada para o céu, as gotas da chuva a doer-me nos olhos. E tu danças até a lua ir alta, até o dia voltar. A chuva não pára e consigo ver a tua cara iluminada pelos relâmpagos. Não tens medo. Com o teu par, danças longe, com passos certos e pernas impossíveis. Riem-se quando se trocam, recomeçam e não param, nem quando não existe música, não existe chuva, não existe o sol. A dança continua eternamente, continua e continua, como um espelho que espelha outro espelho e tornam-se infinitos.
Eu não sei dançar, e por isso talvez não te lembres de mim. Acho que nunca me viste, por isso talvez não te lembres de mim. Tento ajustar os meus pés à tua coordenação, mas não fazem sentido porque nunca fomos nada um para o outro. Mas eu tento na mesma repetir-te ou imitar o teu par, de smoking e cabelo brilhante à luz da rua, os meu pés trocados – sou uma pessoa errada – e de repente olhas para mim. Ainda a mexer os pés e a abanar a anca, amparada num abraço dele, esticas o braço para mim, esticas os dedos e quase que me tocas. Sou fumo e memórias, nada mais. Quase que me tocas como uma sinapse perdida que traz um choque de uma sombra de pensamento que não se chega a concretizar. Estico os meus dedos para tocar na ponta dos teus, mas já voltaste à dança, ao riso, à chuva.