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Sotaques

Estava sentada num café de Lisboa, com uma meia de leite quentinha na mão, a tentar combater o frio que trazia nos ossos. Era inverno, e lá fora já estava de noite às seis e meia da tarde. Olhei para o relógio. Depois, olhei para a porta. Elas entraram juntas, como se tivessem combinado, mas sorriam e abraçavam-se numa festa de quem não se vê há algum tempo e tem saudades. Abraçaram-me também, quando se aproximaram do meu sorriso e dos meus olhos brilhantes. Parecíamos parvas, mas não queríamos saber. Tiraram os barretes e os casacos, pediram os seus cafés, e desataram a falar ao mesmo tempo. Eu sorria e ouvia, com as sobrancelhas arqueadas de espanto e alegria.

Uma das minhas amigas, do Porto, contava-me com entusiasmo algo banal, que não me lembro bem o que era. Só me lembro do entusiasmo no seu sotaque, acelerado, sem medo de viver, de contar, de gritar. Penso que me contava algo do tempo, de como os lisboetas tinham frio à mínima brisa. Algo banal, que naquele sotaque me parecia o maior acontecimento do mês. A minha outra amiga, de Évora, não conseguia acompanhar a rapidez nortenha. Contava-me algo importante com o seu sotaque calmo e doce, como se não fosse nada de mais. “Este mês fui a melhor vendedora lá na loja onde trabalho”, como se dissesse “Dizem que amanhã chove” numa semana de chuva contínua. E sorria feliz, naquela doçura e naquela calma do Alentejo, como se ser a melhor vendedora não fosse nada de mais, não fosse motivo para celebrar. Era uma missão cumprida, era uma razão para estar calma e feliz. A minha outra amiga, do Porto, gritou de alegria e abraçou a outra, e pareceu-me de novo que esse era o acontecimento do mês. Brindámos com os nossos cafés.

Eu sorria, continuava a sorrir, não deixava de sorrir. Ouvia-as a falar, respondia, contava coisas no meu não-sotaque – nós lisboetas temos sotaque, nós é que pensamos que não. Ouvia-as. E pensava. Principalmente, pensava.

Pensava em como as mulheres do Norte eram feitas de cores garridas, sem medo de viver e de deixar tudo claro. Sem medo dos outros nem da vida. Com um sotaque forte, a quem ninguém consegue tirar a razão. Acreditamos que tem, e que sabe todos os segredos do mundo. Um sotaque entusiasmante e agressivo, feliz, eufórico. Uma banda de heavy-metal. Sim, as mulheres do Norte certamente dariam excelentes cantoras de heavy-metal.

Pensava como as mulheres do Sul são doces, cor pastel, sol, calor e paredes brancas. Têm as suas sábias razões. Se um alentejano ou algarvio nos assegurar alguma coisa, também não somos capazes de duvidar, como se estivéssemos a ouvir um ensinamento antigo, uma mezinha que funciona, não há lugar para dúvida naquele sotaque seguro e calmo. Um poema. As pessoas do Sul falavam com a calma de um poema, ralhavam aos filhos num poema, sentavam-se a descansar num poema, trabalhavam num poema. Riam num poema. Eram felizes, calma e serenamente felizes.

Em Lisboa temos algo assim? Como é que eu me definiria? Como definiria os lisboetas? Cordiais, neutros, contentes, “vamos andando” e “faça um jeitinho”. Somos só. Somos a palavra só, sem muito nem tanto. Como um sentimento medíocre. Adoro Lisboa, é a minha casa, mas naquele momento não pude evitar sentir uma pitada de tristeza ao pensar que tentamos sempre ser mais, ser seguros, ser avançados, somos capital, somos mais que os outros. Mas parece que, ao tentar parecer tanto, menos sabemos, menos somos e mais confusos estamos. É injusto falar por tantos lisboetas felizes e diferentes, afinal somos também plurais, completamente diferentes, como se cada um de nós tivesse dentro o mundo. Falo, então, por mim, que depois de 30 anos na minha pele não sentia metade da confiança que via naquelas duas pessoas maravilhosas que tinha à minha frente, que sabiam quem eram e onde estavam. Eu sorria, e ouvia-as. Ouvia-as tão características, tão elas próprias, tão animadas, felizes e seguras. As suas presenças aconchegavam-me o coração, as suas histórias, os seus sotaques, as suas diferenças. Mas sempre tão seguras e felizes. E eu sorria, afastando a incerteza e a tristeza me queriam invadir o coração. Eu ria com elas, contava as minhas coisas, recebia entusiasmo e calma, recebia abraços e sorrisos. E naquela tarde, entre cafés e sotaques, fiquei com a impressão que, afinal, também eu era feliz.

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