Sobre a sobrecarga

O dia da sobrecarga da Terra ”celebra” a altura do ano em que a Humanidade esgota os recursos biológicos e naturais que o planeta consegue regenerar em 12 meses. Este défice ecológico diminuiu em 2020 por motivos pandémicos, onde as emissões de poluentes diminuíram por razões sanitárias, todos nos recordamos das imagens da vida selvagem a passear livremente pelas cidades, num cenário um pouco apocalíptico. Infelizmente em 2021 o dia da sobrecarga manteve a sua tendência: aparecer cada vez mais cedo. Ainda não foi desta que a Humanidade, enquanto entidade colectiva, aprendeu com os erros e se mostrou empática para com o planeta onde vai deixando a sua marca indelével.

Mesmo durante esse ano de 2020, os nossos hábitos de consumo não mudaram assim tanto: o comércio e as encomendas online mostraram que estão de corpo presente com vista a suprir as nossas supostas necessidades (ou excessos). Há sempre um bibelot ao qual não resistimos a adquirir. Na cidade onde vivo é comum encontrar, junto aos caixotes do lixo, roupas, pratos, armários, enfim, tudo o que se possa imaginar em perfeito estado. Presumo que as pessoas têm o impulso de por vezes mudar o recheio da sua casa consoante as necessidades do Mercado e das empresas multinacionais. Ou então pensam que já não se usa, está obsoleto. O Planeta, neste e noutros casos, não agradece este tipo de hábitos, bastante comuns nesta sociedade capitalista e de consumo.

Como se a durabilidade das coisas trouxesse algum mal ao mundo. No sentido lato, a não-durabilidade é bem mais nociva. Há uns meses assisti a um encontro com um escritor na biblioteca da cidade onde habito. Esse escritor contou que, numa viagem ao Japão, conheceu uma família local com a seguinte peculiaridade: só tinham acessível um prato por membro da família. Esses pratos eram herdados de geração em geração- imagine-se o valor e o apego sentimental ali implícito. Para nós, ocidentais, um prato é apenas a repetição de milhões de outros pratos (obrigado Henry Ford, Pai da produção em massa), podendo ser trocado a qualquer instante. Quando tinham algum convidado iam à arrecadação, mais refundida, e lá traziam outro. O autor, na sua ”ingenuidade”, perguntou à família nipónica o que acontecia se se partisse um prato. O pai da família, com cara séria, respondeu: ”Nós não partimos pratos!”. Quando temos apego às coisas, ou às pessoas, não as quebramos. Dedicamos a nossa atenção exclusivamente a elas. Não há nenhum factor que destabilize ou nos distraia. É corriqueiro partirmos objectos porque não lhe damos a devida importância: ou estamos a olhar para o telemóvel enquanto levantamos a mesa, ou somos demasiado bruscos a lavar a loiça, entre outros factores. A banalidade dos objectos retira-lhes magia. E ainda nos faz, a meu ver, consumir de uma forma desenfreada, com o planeta e o meio ambiente a ressentirem-se disso mesmo.

Quando o escritor acabou de contar esta história, logo outra me veio à mente: uma das razões para os casamentos não durarem hoje em dia, comparado com as gerações anteriores. Há umas décadas atrás, quando as crianças quebravam um brinquedo, arranjavam maneira de o restaurar. Hoje em dia, o que acontece quando as crianças partem um brinquedo? Correm logo para o supermercado comprar outro. Esta atitude de descarte será, por vezes, transposta para a nossa relação com os outros? Como diriam os Aqua, ”Life is Plastic, it’s fantastic!”

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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