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Só lhe sobra a pele

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A D. Inês era uma história, como costumávamos dizer. Tinha 80 anos, era viúva, e vivia com um cão, o Senhor Lopes, no terceiro andar de um prédio em Alfama. Cantava fado em vários restaurantes do nosso bairro. Lembro-me que adorava embonecar-se. Pintava os lábios de uma cor forte, nada apropriada à idade mas que lhe ficava muito bem. A pele cobria-a com pó de arroz, como fazia na sua juventude, e incluía dois sinais na cara que não eram seus de origem, mas sem os quais ela nunca se reconheceria numa foto. Eram dela, talvez não da pele mas da alma. Acabava a sua toilette pondo muita laca no cabelo, que ora estava branco, ora estava de uma cor estranha – roxo, cor-de-rosa – que, percebi depois, dependia do champô para cabelos pintados que ela usasse na altura. Acima de tudo, D. Inês parecia uma mulher completa e feliz.

Eu já a conhecia, de algumas vezes que nos cruzávamos na rua. Sorríamos e dizíamos boa tarde, mas nunca tínhamos falado muito. A primeira vez que troquei mais palavras com ela foi no veterinário. Ela estava muito arranjada, como sempre, e não pareceu reconhecer-me quando me sentei ao lado dela. Eu sorri-lhe e ela apresentou-me o Senhor Lopes, um pequeno cão arraçado de Schnauzer que, explicou-me ela, há uns dias se vinha queixando de dores de barriga. Gostei imediatamente dela. Ela olhou para a minha Pit Bull, sem qualquer receio ou preconceito, e perguntou-me o nome. “Amélie” respondi-lhe, com um sorriso. Ela adorou-a, e fez-lhe festas até a enfermeira a chamar. “Bom, vamos ver o que diz o dotôr ao Senhor Lopes” sorriu-me ela. “Boa sorte para si e para a Belinha” e desapareceu com a enfermeira.

Belinha? Olhei para a minha cadela, que me olhava também, de língua de fora, desinteressadamente. Não, é Amélie, quis esclarecer. Mas encolhi os ombros e ri-me sozinha. Achei-lhe piada, e quando chegasse a casa ia ter de contar ao Daniel.

“Ah, conheço essa senhora!” respondeu-me ele. “Ia eu a sair de casa uma vez e ela perguntou-me o nome do nosso gato, deve tê-lo visto à janela ou assim. Eu disse-lhe que era o Steven, mas ela mandou cumprimentos para o Vasquinho, o gatinho lindo.” Rimo-nos os dois daquela peculiaridade da vizinha do terceiro andar do prédio à frente do nosso, e descobrimos uns dias mais tarde que não era só connosco: o cão da nossa vizinha de baixo, o Charuto, tinha sido rebatizado de Chico, assim como o papagaio Penim da vizinha que vivia por cima da D. Inês era, agora, o Igor.

Uma semana depois vimo-la num restaurante, a cantar fado. Não tinha uma boa voz, mas cantava muito alto e com alma. Com garra. Adorámos vê-la no seu elemento, vaidosa e segura, com alma, com o Senhor Lopes ao colo, sossegado, com os olinhos fechados enquando ela cantava. Rindo-me sozinha, imaginei que ela e o Senhor Lopes fariam um dueto digno de se ver. E no fim, quando a fomos cumprimentar, ela não sabia quem éramos. O olhar estava vazio, sem aquele brilho do reconhecimento, e nós explicámos que éramos os vizinhos do prédio em frente, donos da Belinha e do Vasquinho. Ela anuiu com um “claro, claro!”, com um sorriso triste. Víamos que ela não se recordava, que procurava mas não encontrava as nossas caras das suas lembranças. Franziu o sobrolho e ficou preocupada o resto da noite. E nós também ficámos preocupados, a entender, sem querer entender, o que poderia estar a acontecer.

Não consigo deixar de pensar que devíamos ter estranhado. Devíamos ter ajudado, de alguma forma.

Porque quando o filho a foi buscar, uns meses depois, em frente ao nosso prédio, o brilho já lhe tinha fugido completamente do olhar. O brilho, a altivez, a segurança. A vaidade. O rosto estava baço e manchado, velho, sem pó de arroz; os cabelos estavam despenteados, fracos, como se eles também tivessem envelhecido 40 anos. Ela gritava. A D. Inês tinha desaparecido, a mente da D. Inês tinha-se fechado num lugar inalcançável. Agora só nos sobrava a memória. A nós, à família, às noites de fado, aos vizinhos, ao Senhor Lopes, a todos nós, só nos sobrava a memória. A ela não. A ela só lhe sobrava a pele. A pele velha e rugosa daquela criatura anciã, triste, perdida e nua no meio da Alfama, a gritar pelos pais mortos há dezenas de anos.

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Rosa Machado
Curiosa e fascinada pelo que não compreende, bicho dos livros e criadora compulsiva de hipóteses mirabolantes. O tempo não existe quando há conversas filosóficas sobre nada, gargalhadas dos amigos, abraços a animais, viagens pelo mundo e todo o tipo de arte.

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