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“Sinto que fui eu quem matou a minha filha”

Há dores sentidas quase em surdina. Baixinho para que ninguém as oiça. Perder um filho, seja em que circunstância for, é um episódio em que nenhum pai ou mãe imagina estar. O que acontece e como se sentem as mulheres que decidiram terminar a gravidez, devido a más formações do feto? Está o nosso Sistema Nacional de Saúde (SNS) preparado para lidar com tamanhas perdas? E as famílias, como se reconstroem?

A lei nº 90/97 concede à mulher a possibilidade de fazer interrupção da gravidez se, entre outras razões, “houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo”.

Com a ajuda de novas e cada vez mais técnicas de diagnóstico, através da realização de exames específicos, tem vindo a tornar-se possível identificar e/ou confirmar problemas de saúde de gravidade elevada, durante a gravidez. Permitindo assim aos pais decidirem em consciência, assumindo os riscos de ter um filho que poderá necessitar de cuidados inadiáveis todos os dias ou não permitir que este sofra, fazendo a interrupção da gravidez.

Decidir que matamos um filho é algo que tento ainda perdoar-me. Não senti e não sinto arrependimento porque tal como já te escrevi, a decisão é coerente com as minhas convicções mas da decisão à acção, cabe um universo de sentimentos que acabei por descobrir e sentir.

Trata-se de um processo semelhante ao parto normal. Após dado o consentimento da grávida, esta agenda com o obstetra o dia em que dará entrada no hospital, é devidamente tratada para que se dê início ao processo de expulsão daquele que, muitas vezes, nem é considerado nado morto, devido à idade gestacional.

“Sempre quis ser mãe. Sempre disse que jamais conseguiria ser mãe de um filho deficiente.” Esmeralda Martins, acredita que por ter tido esta convicção, a vida a castigou. Aos 35 anos, na 22ª semana de gestação da sua filha Joana, chegou-lhe o diagnóstico de que a sua menina era portadora de trissomia 21 (T21) profunda. Foi informada friamente com um papel-relatório que ditava a doença da sua filha.

Após realização do rastreio bioquímico, às 15 semanas, a conclusão deste rastreio traria a notícia de que havia a probabilidade de 1:7 da menina de Esmeralda ser portadora de más-formações. “Chegou por um telefonema alarmante, deveria ir buscá-lo à clínica e ir imediatamente ao médico. Fui, a correr e a chorar, em pânico. O médico enviou-me de urgência para o hospital, teria de fazer uma amniocentese de urgência. Havia perigos. Foram-me comunicados. Acedi meio confusa. Vi outra vez a minha bebé e soube naquela tarde que era menina. Tiraram o líquido e correu bem. Disseram que tinha bom aspecto e cor.”

As semanas foram passando e acreditou que, considerando a informação relativamente ao líquido amniótico, tudo estaria bem com Joana e a gravidez.

Recebeu um telefonema com a indicação de que para saber o resultado do exame seria necessário ir ao hospital. Optou por ir sozinha, apesar do marido ter querido acompanhá-la. “Esperei 6 horas, fui almoçar, recordo cada minuto daquele dia. E quando me chamam e o médico me pergunta o que faço ali sozinha, agarrei a minha barriga e chorei. Lá dentro ainda chorei mais e gritei ao ler o que não queria. E ter de decidir. De dar uma resposta. Sim ou não. A quê? Como poderia contrariar a minha própria convicção? Como?

Decidimos, já com o meu marido ao lado, a IMG. Escutei que teria de passar por um parto, teria leite e muitas mais frases ditas que deixei de ouvir. Depois disseram-me que teria de aguardar pelo telefonema do hospital para ser chamada para o dia do parto.”

Na semana seguinte, Esmeralda, entrou em estado tal que se obrigou a “mexer e a não pensar para não sentir os pontapés, não me via ao espelho, sentia-me vazia e senti muito medo. Sou daquelas pessoas que não tem medo de nada, que enfrenta o medo de frente, sempre. E desta vez não tinha coragem, só medo. Medo do que ali vinha, daquele dia do parto, de tudo.”

Contou com o apoio da sua família, assim como a do esposo. Nunca se sentiu condenada por ter optado por não continuar a gravidez.

“Sentia-me uma carrasca, uma pessoa capaz de matar um filho só pode ser má. E lá está, sem arrependimentos, parece que o instinto animal primário da selecção natural me chegou muito cedo na vida, a hipótese de criar uma filha deficiente mental e não poder garantir a sua subsistência após a minha morte, o peso de deixar uma ‘herança’ destas à minha filha mais velha, o futuro e não o imediato foram a minha maior força naqueles tempos e a minha ‘desculpa’.”

A 24 de Maio de 2012, nasceu Joana. Já sem vida. Durante a indução do parto, a mãe esteve “todo o dia com dores, sozinha, a pedir-lhe desculpa, a pedir que a vida me poupasse a uma dor semelhante no futuro, a pedir para ser forte e ter coragem, a chorar, a ter dores alucinantes, sem qualquer anestesia e já bem tarde, na companhia do meu marido do lado esquerdo e de uma médica do lado direito que me segurava a mão e me fazia festinhas na testa, a minha filha ‘nasceu’ morta e da única vez, eu não quis ver, não consegui ver, pedi para não ver.”

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Carta de despedida a uma filha

“Profunda tristeza, dor e muito sofrimento.

E pela 3ª vez tenho de escrever aquilo que não quero, mas que preciso para apaziguar a minha dor e deixar sair esta angústia. Ontem ouvi e li aquilo que não desejei. Ontem entrei num verdadeiro pesadelo e ainda pensei que acordaria e tudo não passaria de uma mentira horrorosa. Mas a realidade é dura e trouxe-me com ela a pior das encruzilhadas, em que quaisquer das opções a seguir em frente são más. Pena que uma delas não possa ser voltar atrás. Porque desta vez, desta única vez, voltaria atrás e não teria sequer querido engravidar. A Mãe Natureza deu-me um duro teste desta vez. O pior, acho eu. A decisão, já estava tomada havia muito tempo, mesmo antes de ser Mãe, muito embora nestas circunstâncias, me sinta entre a espada e a parede. Sinto-me uma carrasca, culpada e ao mesmo tempo sem forças para enfrentar sequer a suposição de ter de arcar com a responsabilidade da decisão oposta à nossa.

No fundo, pensámos em nós, enquanto família, enquanto casal e principalmente num futuro distante e não no imediato. E não tivemos dúvidas. Mas estou em pânico, tenho tanto medo, estou vazia de tudo e cheia de medo. Só choro, de tristeza. Já nem sequer me faço aquela pergunta do “porquê”, simplesmente porque talvez nunca venha a ter a resposta que queria ouvir. Hoje estou grávida de uma bebé com Trissomia 21 profunda. Um dia destes, em breve, não estarei. Esta foi a nossa decisão e enfrentá-la-emos com a coragem e força que conseguirmos ir tendo.

Temo que demore muito, até que me recomponha, até que o meu sorriso seja mesmo sincero e não fingido, até que, por momentos do dia, me consiga abstrair e não pensar na mais cruel das decisões que a Vida me deu a escolher.”

Por Esmeralda Martins[/box]

Nos três meses seguintes, o apoio em consultas de psicologia foi-lhe garantido, tendo cessado apenas por mudança de área de residência.

Por opção, o casal decidiu não voltar a ter filhos biológicos e avançar para o processo de adopção, tendo inclusivamente casado com o propósito de acelerar o mesmo. A vida que Esmeralda julgou tê-la castigado, surpreendeu-a quando descobriu que estava grávida novamente. O Manuel tem hoje 1 ano e meio.

“Não tenho todos os filhos comigo. Mas tenho os filhos que quis ter, são 5 ao todo, amo-os a todos. Um amor que foi capaz de matar sim. É duro, é cruel, é a verdade. Se dói? Sempre. Mas todos os dias peço à mesma vida que me deu esta provação que me poupe, que me deixe viver agradecida pelos filhos que dormem em casa.”

O mesmo acompanhamento no SNS não foi dado a Patrícia Pereira Pinto.

Aos 19 anos, foi-lhe dito friamente que a filha Sofia tinha “uma malformação incompatível com a vida e cara de sapo (assim mesmo, sem rodeios) e que teria que abortar, pois nada mais haveria a fazer”. O diagnóstico de anencefalia permitia que a fisionomia da face do feto fosse disforme, devido à ausência de cérebro.

Era sexta-feira, quando soube o diagnóstico, e foi-lhe indicado que teria de estar no hospital, na segunda-feira seguinte – 10 de Março, dia de aniversário do marido – para ser feita a interrupção.

“Imagine-se como é possível estar um fim-de-semana, sentir a minha filha, olhar para a minha barriga e saber que, na segunda-feira, iam matar a minha filha? Sim matar, porque ela estava viva.”

Considera que foi aquele o fim-de-semana mais angustiante da sua vida. “Pedi a Deus que fosse um erro. Fui à missa rezar à Nossa Senhora e pedir que não me levasse a minha filha… Na segunda-feira, lá fomos, eu, o meu marido e a minha mãe… Eu não sabia o horror que ainda ia viver, os piores dias da minha vida… Entrei no hospital às 9h da manhã, às 9h30 estavam a induzir-me o parto, deram-me algo nas veias e eu sentia a minha filha a mexer-se muito, não parava, acho que foi aí que morreu.”

Há 14 anos, quando passou por tamanha dor, foi colocada num corredor de um hospital público em conjunto com outras grávidas e mães com os seus nascituros. Assistiu à alegria de muitas, enquanto passava pela angústia que nenhuma imaginava. “O desespero era tanto que eu só pedia para me tirarem a minha filha, eu, já não era eu.”

A bebé Sofia nasceu sem vida às 19h de dia 11. Aconselhada a não ver a filha, acatou o conselho. Hoje atormenta-se com a escolha que fez.

No dia seguinte, teve alta e relembra que “nenhum médico me deu os sentimentos, nenhum me disse lamento muito. Nada. Muito pelo contrário. Fui sempre tratada friamente, como se aquela fosse a minha vontade, como se eu quisesse matar a minha filha…”

Foi amparo e apoio na sua família.

No centro de saúde, nunca questionaram se sentia necessidade de suporte de consultas de psicologia. No trabalho, quando regressou poucos dias depois, sentiu-se igualmente desamparada. Ninguém me queria ouvir. “Só diziam para esquecer, que ainda era muito nova e ia ter muitos filhos, que tinha sido melhor assim do que vir para o mundo sofrer… Mas eu já sabia disso tudo. Queria que me dissessem que lamentavam muito, que me dessem um abraço, que me dissessem que tudo ficaria bem, que me deixassem falar nela, como a minha Sofia, a minha bebé, a minha filha que morreu, que eu não dei colo, não amamentei, mas que amei com todas as minhas forças. Não queria que mudassem de assunto nem que me dissessem que acabou.”

Patrícia teve três filhos depois da primeira gravidez. A todos contou que “tiveram uma mana, que está no céu, a tomar conta de nós os cinco. Tenho fé – e foi e será sempre o que me consola – que um dia nos encontraremos todos no céu e que a nossa Sofia, saberá que foi amada por todos nós… Neste momento, as coisas estão mais resolvidas na minha cabeça, mas no meu coração, talvez nunca se resolva.”

A gravidez em idade já avançada traz riscos acrescido e aumenta a possibilidade de gerar fetos com más formações. Assim que Tânia soube que estava novamente grávida amedrontou-se por conta dos 38 anos que tinha. “O risco de T21 é sempre maior, mas nunca pensei passar por isso. Mas o certo foi que o receio estava lá.”

Por ter excesso de tecido adiposo na barriga e devido à posição do feto, na primeira ecografia que fizera não foi possível fazer todas as medições necessárias, no entanto, foi-lhe indicado que “parecia estar tudo bem”.

Devido ao peso, foi proposta a realização de um exame adicional de diagnóstico. “Agora tem que ir fazer a análise das 12 semanas para saber se o bebé é mongolóide.”

Chegado o dia do exame, foi esclarecida relativamente à necessidade de fazer-se a amniocentese, quais os riscos, no que consiste e que doenças detecta.

“O meu marido nunca esperou que tivesse alguma coisa de errado. Eu, pelo contrário, já estava decidida em terminar a gravidez, caso não estivesse tudo bem. O meu receio era a T21. Conheço casos em que está tudo bem e famílias que nem por isso, sei das ‘lutas’, sei que não vivemos para sempre e o depois sempre me assustou, daí ter colocado o coração ao lado e ter tentado ser o mais objetiva possível quanto ao resto.”

Referiram durante o exame que se não recebesse nenhum contacto nas três semanas seguintes, tudo estaria bem. Passado o período referenciado e sem receber nenhuma chamada telefónica, Tânia quase acreditou que tudo estaria bem com o bebé e a gravidez.

Recebeu o contacto numa sexta-feira, com a indicação de que seria necessário apresentar-se no hospital na segunda-feira seguinte, para falar com o médico sobre o resultado da amniocentese.

“Fomos para o hospital para ouvir a confirmação do que eu já sabia. Comecei a chorar antes do médico dizer o resultado, não havia margens para dúvidas. O médico explicou que o resultado vinha com T21, explicou os riscos, as adversidades, o que podia correr mal durante o parto, mesmo durante a gravidez, caso optássemos por continuar, explicou tudo. Com calma, com humanidade. Esperou que eu acalmasse, respondeu às perguntas do meu marido. Foi fazer uma ecografia, desligou o som para não ouvirmos os batimentos. Não nos apressou a decidirmos, explicou tudo e disse para irmos para casa e pensarmos no que queríamos fazer. Podíamos deixar os documentos assinados, porque moramos muito longe do hospital, e quando decidíssemos, ligávamos a comunicar para a equipa de médicos a autorizar ou não. Explicou que, nestes casos, a equipa médica autoriza sempre uma interrupção. Tínhamos até às 24 semanas para decidir. Eu estava com 19 semanas.”

A decisão já havia sido tomada ainda antes de saber o resultado. “Não foi fácil, não é fácil e não está a ser fácil. Mas, sinceramente, não acredito que a nossa sociedade está aberta à inclusão. Morro por dentro cada vez que alguém olha para uma criança, uma pessoa com necessidades e diz: ‘Coitadinho’. Cada vez que vejo crianças com T21 ou com outras necessidades que são postas de lado. Porque é a maioria e não minoria, por mais que todos queiram dizer que não. O meu marido não sabia o que dizer, o que pensar, o que decidir. Ele não estava à espera disso.”

No dia da interrupção, foi colocada no piso das grávidas, inicialmente, num quarto mais resguardado. “Nunca senti que fui maltratada ou colocada de parte. Sempre vieram quando eu chamava, sempre sorriram, sempre me responderam a alguma pergunta. Olhavam para mim com olhar de pena, sim. Isso senti, mas eu também tinha pena de mim, de nós. Passei o fim do dia e a noite a ouvir grávidas a andarem de um lado para o outro, a gritarem a fazer força e a ouvir o primeiro choro de bebés. A intervenção durou um dia e meio.”

Recorda que foi sempre bem tratada, enquanto esteve no hospital, desde as auxiliares aos médicos.

Uma das piores partes foi a necessidade de se mostrar forte para a filha mais velha que estava “inconsolável, porque sempre quis um mano. Eu não queria demonstrar extrema tristeza para não preocupar todos. Fui-me completamente abaixo numa noite, já em casa, quando chorei muito, muito nos braços do meu marido.”

Se dói? Sempre.

Para ultrapassar da melhor maneira o luto e tamanha perda, o centro de saúde garantiu acompanhamento com consultas de psicologia. Neste momento, continua a “pensar que foi a melhor decisão para todos. As pessoas dizem todas que fariam o mesmo que eu, menos, claro, os pais de crianças especiais.”

Acorda diariamente, recordando o que se passou. “Não foi uma decisão tomada de ânimo leve. É uma decisão com a qual tenho que viver o resto da minha vida.”

Esmeralda, Patrícia e Tânia têm em comum a sensação de terem sido as próprias a matar os filhos e o colo vazio do abraço que nunca conseguiram dar à Joana, à Sofia e ao bebé.

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