A Carlota lava os pratos e pensa que é uma pessoa complicada. Confusa. Sente que não tem personalidade, sente que não sabe o que sentir, e pensa que não sabe o que pensar. Está confusa. Acha que tem de procurar uma personalidade, ou de encontrar a sua, que estará perdida dentro dela.
Pensa que, para começar a definir-se, deve saber do que gosta. Coisas fáceis: gosta do Verão, de sorrisos, de conversas divertidas, do calor, de esplanadas, de animais, de sumo de laranja. Coisas mais complexas: de viajar de carro sem rumo enquanto ouve rádio, de parar à beira da estrada para comprar fruta, de receber massagens nos gémeos enquanto vê televisão, do suor e do cansaço depois do exercício. A Carlota esfrega os pratos e pensa que gosta daquela tarefa, mais do que de cozinhar. Está a lavar os primeiros pratos que sujou desde que voltou de férias. Ela também gosta das férias, e acredita que as férias só podem ser vividas de forma total se conseguir desligar do facto de sentir um turbilhão dentro dela. Acha que, para sentir, é só preciso fechar os olhos e relaxar. Mas quando fecha os olhos, o turbilhão faz-se mais presente, e ela acaba por abri-los, por tentar viver com esse turbilhão e tentar aproveitar as férias assim mesmo. Só que sabem-lhe a pouco.
Também gosta da ideia de cometer loucuras, e sente-se satisfeita quando faz algo fora da rotina. Sente-se atrevida, capaz de comer o mundo, capaz de ser e de fazer o que quiser. Só que não é por muito tempo, porque começa os pensamentos inquietos trazem de volta o turbilhão, acompanhado de medo e de realidade.
Sim, além de confusa, também sente medo. De nada em concreto. De tudo em geral. De arriscar e pôr-se a jeito. Do quê? A jeito da crítica cruel, de falhar redondamente, de perder tudo.
A Carlota seca as mãos no pano da cozinha e prepara-se para se deitar. Despe o robe e enfia-se na cama. Olha para o namorado, que já dorme, e sorri. Mais uma coisa super fácil de que gosta: a Carlota gosta do seu namorado. Muito! De todo ele. Mas naquele momento em particular gosta do calor dele, do roçar da pele dele, de dormir com ele, dos olhinhos e do sorriso de felicidade que ele faz quando ela chega à cama. Prepara-se para dormir, sente-se sempre extremamente cansada, mas antes pega no livro que está à cabeceira. Porque um dos maiores prazeres da Carlota é deitar-se confortável, aconchegada e exausta, e ler um livro a altas horas de Sexta-feira, com o namorado abraçado às suas pernas, e sabendo que tem o fim-de-semana todo para descansar. Sente-se feliz, e quando se sente feliz acha que não tem de sentir mais nada. Nem de pensar.