O Rei David é uma figura mítica, frequentemente lembrado como exemplo de um grande homem que, apesar da suas falhas humanas, mereceu a piedade de Deus e foi usado como Seu instrumento na Terra. Torna-se uma alegoria sobre o poder de ser perdoado apesar dos pecados, e de explicar ser possível servir um propósito maior desde que os vício terrenos não obstruam esse caminho divino.

Este é o David que derrotou Golias, participou numa carreira militar que lhe valeu ser recebido por música e mulheres; e poupou a vida ao Rei louco que o queria morto; é o mesmo David que conspirou para enviuvar Betsabé para poder casar com ela (e Deus matou o primeiro filho do casal como castigo pelo adultério de David).

O Papa Francisco, na recente lavagem de pés a jovens reclusos, assumiu que todos possuem a “dignidade de ser pecadores”, pois “qualquer um de nós pode escorregar e cair da graça”, e quando tal acontece devemos retirar a lição de “ajudarmos uns aos outros, para que a vida seja melhor”.

Sei que Portugal está a assistir a um dos maiores casos de corrupção e má gestão dos últimos tempos, levando a uma importantíssima Comissão de Inquérito sobre a relação promiscua entre governo e TAP. Na manhã seguinte à Comissão, os jornais portugueses preferiram dar primeira capa à detenção de Donald Trump, acusado de usar dinheiro público para pagar o silêncio a uma atriz pornográfica com a qual teve relações sexuais. De facto, as prioridades da comunicação social portuguesa são dúbias. Não obstante, a reação do eleitorado trumpista, inclusive dos seus apoiantes em Portugal, lembrou-me a história do Rei David, invocada com alguma frequência pelo ex-gabinete de Trump e personalidades como Ben Shapiro e Dennis Prager.

CONSERVADORES, SALVO SEJA

Apoiantes de Trump, Salvini, Putin e Ventura, têm em comum a imensa capacidade de tolerar tudo o que estes indivíduos pensam, falam e fazem. Embora Trump e Ventura, por exemplo, não sejam exatamente a mesma coisa, o culto de personalidade e outras características do seu eleitorado é algo que os une. No entanto, tenho grandes reticências em chamar a esta ala radical de conservadora.

Primeiro, cada país tem a sua tradição política (conservadora), logo faz-me alguma espécie a atitude “é de direita e desafia as elites, logo tenho de apoiar”. É assim distinto do liberalismo clássico e socialismo marxista que têm uma identidade global; segundo, a ideia de “conservador nos costumes” propagada pelo eleitorado trumpista, está muito ligada a características reacionárias e revanchistas, como o retorno de papéis sociais de séculos passados, em vez de uma moderada adaptação ao presente; terceiro, existe a presunção que, seguir valores religiosos mais tradicionais é sinónimo de ser conservador. A direita radical reduz o cristianismo a uma posição política, ao mesmo tempo que proclama – e bem – a sua fé estar acima de tudo. Na prática, usam as crenças religiosas para justificar as paixões políticas.

(Para sermos justos, no Brasil, tal como Bolsonaro, Lula participou em orações e associou-se a grupos religiosos durante a sua campanha, mostrando que a religião está enraizada no mainstream político brasileiro e na sua relação com o elemento do Estado e seu eleitorado).

Quando Trump foi detido, surgiram em Portugal e Américas menções de Jesus Cristo ter sido crucificado por mostrar o caminho do bem, tal como Trump foi preso pela exata mesma razão (com imagens anexadas de Trump em poses dominantes, geradas por Inteligência Artificial). É um argumento bizarro quando invocamos Jesus para cobrir alguém defensor da lei e ordem, e família nuclear, mas que aldraba contas, comete adultério em série e se dá bem com ditadores.

Questiono se isto se deve ao valor tradicional na sociedade portuguesa em frequentar casas de alterne e fugir aos impostos. Considerando que saímos de casa dos pais quase aos 40 anos, e parte disso deve-se à pesada carga fiscal que aumenta os juros de 200 para 700 euros em muitos casos concretos, se calhar sou eu que estou a ser demasiado injusto com a ala trumpista.

Muito recentemente descobri acidentalmente – redes sociais dos jornais – quem é Andrew Tate, recentemente preso por tráfico sexual. Aparentemente mais um macho que “diz as verdades” e que o “matrix mainstream” quer destruir para proteger as elites. As suas “verdades” envolvem o papel das mulheres na sociedade, estatuto social e prosperidade. Muito “neopentecostal”. Independente do que ele diz, as suas ações são tão claras quanto o próprio faz questão de mostrar: relaciona-se com prostitutas, cria conteúdo pornográfico, gaba-se de ter imensas namoradas, e incentiva à exibição de riqueza e poder.

Claramente um tipo a quem queremos dar mão durante a oração antes da refeição.

Faz o máximo proveito dos prazeres terrenos, considerado pelo Cristianismo e Islão uma depravação. Isto vai também contra a filosofia de personalidades como Jordan Peterson – que também já teve melhores tempos – conhecido por promover domínio próprio e castidade, como forma de combater vícios e a falta de estabilidade que leva à separação de famílias, e dificuldades na mono parentalidade (entre outras coisas controversas e contrarianas).

FALSOS PROFETAS

Em Portugal, temos personalidades associadas à direita-radical e Chega que seguem a mesma “lógica”, exibindo-se sob pretexto de estarem a “trollar” as bloquistas e defensores da ideologia de género (que traz também o seu set de problemas), sendo estes da esquerda radical.

O que isto mostra, na pratica, é que a verdadeira ameaça para os “defensores dos bons costumes” não é o sexo fora do casamento ou o adultério (quando cometido por um homem), nem a indulgência dos prazeres que os próprios acusam de degradar a civilização. A verdadeira ameaça são as ideologias que influenciam as mulheres para fora dos papeis tradicionais, permitindo a indulgencia do homem enquanto este espera castidade e obediência das mulheres dentro do seu círculo social direto. Na conhecida obra de Margaret Atwood, a “História de Uma Serva”, existe uma vida noturna secreta e extraordinariamente sexual onde homens de alto estatuto têm sexo com as Jazebels, mulheres que caíram da graça. Ao mesmo tempo, esperam a maior retidão das suas esposas e filhas, sobre risco de punição caso se desviem do dever divino.

Por outro lado, as “influencers” da direita-radical exibem também os seus atributos e brandem armas, enquanto repetem argumentos de castidade, apelam ao auto-domínio masculino e incentivam mulheres a serem submissas. Aquelas que eu fui acompanhando, como Lauren Southern, mais tarde admitiram não serem santas, terem casos de uma noite, e a terem encontros com outros influencers trumpistas, masculinos, que “tal como um bom homem tradicional e conservador” (tom irónico) tentaram ter sexo no primeiro encontro. Algo similar assisti online com um certo professor anti-comunista, cujos vídeos são sobre conservadorismo e bons costumes, e mais tarde deixou escapar que o próprio não era exemplo – e era um “bon vivant como Salazar foi com as mulheres” – mas que simplesmente explicava como achava que a sociedade deveria ser.

Não é a falta de bons exemplos que nos colocou na “decadência da sociedade”?

RADICALISMO JÁ ESTÁ NORMALIZADO

Trump e seus herdeiros ideológicos tiveram um instinto que algo estava fundamentalmente errado com o status-quo, e sentem que os seus apoiantes devem ficar zangados por isso. É legítimo. Mas a depravação tornou-se mainstream e está representada nos extremos políticos. A maior diferença parece estar na forma como cada um exibe o orgulho do seu pedestal moral.

Existe medo que qualquer coisa serve para “dar razão” ao crescimento da direita radical – assassinato no Centro Ismaili, corrupção no governo e na TAP – e no entanto, o “Mos Maiorum” da direita é o seu maior calcanhar de Aquiles. Ainda assim os pavões continuam a ser recompensados.

Estes reconhecem corretamente as consequências de uma cultura que ostraciza a masculinidade e sabota o papel do homem na sociedade. São as crianças que pagam com isso e só aumenta igualmente o papel involuntário da mulher como “mãe do esposo”. A guerra dos géneros é excelente para retirar responsabilidades sociais e usá-las como armas de arremesso. Mas no sentido literal e figurado, a direita e esquerda radicais discutem durante o dia, mas “comem-se” durante a noite. Não porque opostos se atraem, mas porque partilham da mesma vaidade e narcisismo. Adaptaram a queda da graça como característica fulcral do seu modo de vida.

Para uma fação que procura reparar a sociedade e trazer de volta os bons costumes, esperava-se incentivos a bons exemplos. Se o básico já é pedir muito e difícil de observar, então isso é suficiente para temer dar-lhes poder.

Pergunto se isto se deve também a uma mudança no paradigma sexual que, inevitavelmente, chegou aos escalões da direita radical, que em alguns aspetos económicos tem um tempero libertário. Conquanto “conservador nos costumes e liberal na economia” é virtualmente impossível, pois a economia e a cultura são ciências sociais bastante intrínsecas, com vários compromissos entre si.

A estratégia para lidar com as inconsistências que surgem, passa por invocar como máximas a liberdade individual e o propósito divino, que embora dignas, no fundo não são nada mais que parte do sistema de anti-corpos que imunizam esta tribo de ameaças externas. Infelizmente são corrompidas, e o mesmo escrutínio não é dado a quem percecionam ser de esquerda, embora o alvo principal ser a ala radical de esquerda, que na prática, tem a mesma atitude moralista. Normalmente, políticos e personalidades do anti-estabelecimento têm de convencer os seus apoiantes que estão em oposição à estrutura de poder existente.

O discurso populista tem um tom urgente, onde toda a batalha é final – everyday is doomsday. Donald Trump, ao lançar a sua campanha presidencial de 2024, disse aos seus apoiantes que enfrentavam uma escolha entre a vitória ou “o país estaria perdido para sempre”. É a “batalha final” na França, em Israel, na Turquia…aparentemente, voltar ao normal após uma eleição é algo que se perdeu. A luta entre ideologias utópicas e medos apocalípticos normalizou-se como O Método de fazer política.

Nas palavras de Ivan Krastev para o Financial Times, “radicalismo tornou-se o padrão para lidar com complexidade e confusão […] quando as eleições são meros carnavais de paixões, governação eficaz é impossível”.

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Igor Veloso
De Águeda, cidade dos chapéus de chuva, perfeita para quem gosta do inverno e precisa de proteção do sol. Interessado na atualidade política, mete-se em vários projetos locais e humanitários.

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