Levei anos convencido de que As Vinhas da Ira havia sido o primeiro filme a preto e branco que vi, o que para mim até foi verdade, ainda que o primeiro filme feito a preto e branco visto em televisão tenha sido a versão original de Revolta na Bounty, de 1935, com Clark Gable no papel de Fletcher Christian e Charles Laughton como o sádico capitão Bligh.
Não recordo se os meus pais tinham ido jantar fora e a minha avó ficou a tomar conta de nós, ou se estávamos de férias com ela na Marinha Grande. Certo é que estávamos sozinhos com ela (e se foi na Marinha Grande, talvez só eu estivesse com ela). Era provavelmente o tempo em que só havia dois canais e por isso a televisão podia dar-se ao luxo de passar filmes bons a horas decentes. Naquela idade – nove, dez anos – não fazia planos nem estudava os horários dos filmes que a RTP oferecia: via o que havia e naquela noite de sexta ou sábado, transmitiam uma versão colorizada da aventura a bordo do navio britânico Bounty, que transportava fruta-pão pelo Pacífico, do Taiti até à América.
Mal sabia eu que estava a ver uma obra de um dos grandes realizadores dos primórdios do sonoro, Frank Lloyd, mas isso pouco importava naquela idade. O que me ficou, além do interesse contagiado pela minha avó (ela conhecia Clark Gable e E Tudo o Vento Levou, um dos filmes da sua juventude) foi a experiência maravilhosa que é ver um filme de aventuras, um bom filme de aventuras, género que andou décadas arredado da atenção dos grandes estúdios, somente recuperado no início da década de oitenta com Em Busca da Esmeralda Perdida e A Jóia do Nilo, e a série de Indiana Jones. Naquela noite, o imaginário das histórias de aventuras cruzou-se com a magia do fim da infância.
Não voltei a rever o filme, nem sei se o quero fazer. Talvez por saber o exacto lugar que ele hoje ocupa na minha vida, a importância que teve e o momento que ele evoca. Não é propriamente o medo de desfazer a magia mas uma vontade de “não estragar um acaso tão bem acontecido”. Contudo, não é algo que remova da paleta das intenções: se acontecer, será uma segunda visualização bem-vinda.
Além da alegria da minha avó, o que guardo dessa noite longínqua (mais de trinta anos!) é a surpresa de um filme do tempo dela ter prendido a minha atenção durante mais de duas horas!