No passado dia 19 de novembro, a comunidade católica celebrou o sétimo ano do Dia Mundial do Pobre, estabelecido pelo Papa Francisco em sua Carta Apostólica Misericordia et Misera em 2016.
Os mais religiosos refletiram sobre o verso bíblico de Tobite 4,7 – “Nunca afastes de algum pobre o teu olhar”. Em tempo sinodal onde a igreja (tenta) mostra-se aberta ao povo – a todos, todos – algumas paróquias levaram a data a sério e abordaram o tema da pobreza juntamente com várias Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) locais e com as Câmaras Municipais.
Cada concelho tem problemas diferentes com dimensões variadas. A influência e o impacto das organizações religiosas nessas comunidades também depende muito de quem está ativo, mas raramente é insignificante. O braço da Conferência Vicentina tem atendido a situações muito concretas de necessidades básicas: entrega de alimentos, roupa e até atenção média aos mais carenciados, inclusive a imigrantes de várias nacionalidades como brasileiros, ucranianos, nepaleses e indianos. Nem todas as paróquias têm uma CV e cada concelho tem uma seleção de instituições com quem prefere trabalhar por ter estabelecido níveis de confiança saudáveis, disponibilizando-lhes assim mais apoios.
E não está exclusivo à religião católica. A Abashalom é uma IPSS de cariz social que abriu em 2006, em Águeda, numa zona e momento de carência. A sua origem evangélica baptista – pela Associação Baptista de Águeda – nunca foi escondida, pelo contrário, é motivo de orgulho. Presta apoio a dezenas de famílias com uma creche e outras valências, desde a alimentação à habitação.
Acredite-se ou não no ecumenismo, no que cabe ao apoio social as instituições religiosas são incentivadas, por necessidade, a trabalhar em conjunto no combate à pobreza. Mas há desafios e dificuldades.
Questões a abordar
As CV não são reconhecidas com estatutos legais, ou seja, não têm um poder ou vínculo político que as coloquem no alvo de apoios financeiros por autoridades públicas. São compostas puramente por trabalho voluntário, tal como a angariação de recursos. Cada vez menos pessoas estão ativas nestas comunidades, também cada vez mais envelhecidas. Os espaços cedidos para armazenar os donativos dependem da propriedade da igreja local, ou da propriedade da IPSS ao qual está moralmente associada: o Património dos Pobres.
Esta instituição tem sobre sua responsabilidade várias habitações para alojar indivíduos com dificuldades, desde abrigo temporário a vítimas de violência doméstica, a alojamento de longo prazo a indivíduos com esquizofrenia, ou debilitados com grande dificuldade em se inserirem socialmente.
Apesar de reconhecida como IPSS, nem todos os locais conseguiram estabelecer uma pegada social, também devido à sua ligação com a igreja e perda de influência desta. Alguns Patrimónios caíram numa completa negligência, ou mesmo esquecimento, por corrupção interna, má gestão ou falta de empreendedorismo. Porquê?
Algumas respostas estão presentes num artigo sobre as Jornadas da Juventude de 2023. Durante este dia 19 surgiram outras reflexões. Não há dúvidas que além do sentido de oportunidade e responsabilidade social, é necessária uma atitude empreendedora. A razão porque muitas instituições falham na sua missão está num agudo Síndrome de Madre Teresa onde existe um romantismo pela pobreza, que é vista como uma virtude. É um péssimo incentivo que leva aos voluntários nestas instituições a acabar a sua missão no mero ato de dar algo. Dei um cabaz e uma peça de roupa, está feito! Ajudei o pobre! E este aparece na próxima semana, e na próxima, durante anos, sem ter ganho nenhuma base para garantir a sua independência, e usar a sua liberdade para viver nos seus termos.
Falta de Recursos e de Agilidade na Missão
Acredito que seja por falta de recursos e dados. Uma CV dá os bens básicos, mas precisa de cruzar dados com uma instituição especializada. Um caso de estudo: a CV dá comida, roupa e produtos de higiene a uma família; esta família está alojada numa habitação ao abrigo do Património dos Pobres, que forma um protocolo com “uma” Abashalom para apoiar as crianças desta família a introduzir bons hábitos; mas estão todos as trabalhar em frequências diferentes, nem sempre compatíveis, e com consequências de forro logístico que atrasam a ajuda e reinserção social destas famílias.
A CV depende 100% de donativos. O Património vive de angariação de fundos através de eventos, mas como IPSS tem estatuto legal para concorrer a apoios à habitação programados pela Câmara Municipal. Contudo, a CM tem de trabalhar estes apoios com um gabinete moldado para o efeito e em sintonia com o governo central, e isto leva imenso tempo, especialmente quando parte – se não todo – dos fundos vem de ajudas Europeias. Durante este tempo de espera as habitações que entram no programa de apoio ficam congeladas. Nada pode ser feito nelas até a CM dar luz verde para as perícias e para o aguardado investimento, enquanto esta prepara as listas de futuros inquilinos em situação considerada vulnerável segundo os padrões de avaliação do Estado. Aumenta entretanto o estado de degradação das habitações e os custos de reparos e reconstrução. Uma instituição que queira agora rejuvenescer, mesmo com a equipa certa, está tramada, e sem resposta social, especialmente nos casos urgentes.
O voluntariado leva anos para angariar fundos para tornar uma casa habitável e preparada a nível de segurança e acessos. O apoio do Estado é fundamental. Obrigatório até, a não ser que haja empresas interessadas em investir no sector social e trabalhar em conjunto com as comunidades. O que também é uma solução, não fosse um inerente ódio ao “rico” (de definição ambos abstracta e conveniente consoante os interesses do locutor), que a igreja tem. E no entanto, sempre pronta a dar do bom e melhor às Dioceses ou mesmo ao Vaticano.
É, então, imperativo que uma associação como esta se encoste politicamente. Não é partidariamente, é politicamente. Deve contactar, ou mesmo contratar, mão especializada para reduzir custos, colher dados, e trabalhar o problema para agilizar as soluções. Deve insistir nas reuniões com os pelouros, dar a conhecer a instituição com as pessoas certas, aproveitar todas as oportunidades para fazê-lo e com uma atitude que veja o futuro. Não ficar à espera da CM, ir atrás dela, e isto requer que as pessoas certas criem as relações com outras pessoas que partilhem a visão. O gatekeeping existe, sem sombra de dúvida, tal como o dogmatismo, mas a corrida de armas entre Sociedade Civil e Estado sempre foi um facto. A boa vontade não chega por si só.
Ao fim do dia, as instituições com melhores recursos à sua disposição têm uma relação mais próxima formal e informal com outras entidades públicas. As mais bem sucedidas são aquelas que sabem trabalhar os recursos, investindo na competência e auto-suficiência da instituição e das pessoas que ajudam, articulando isto entre as associações e entidades socio-caritativas. Algumas CM visam agilizar o processo com a criação de plataformas para acompanharem os casos de apoio e avaliarem os resultados das intervenções.
Falta de Foco ou de Comunicação
Muitas instituições e CM concordam com o argumento que várias instituições tendem a ajudar a mesma pessoa, tornando a ajuda redundante e desperdiçando recursos. Temos de descobrir porque a mesma pessoa está a ser ajudada há 5-10 anos consecutivos, com poucos ou nenhuns sinais de melhora. Isto pode ser porque a instituição está, afinal, a falhar na gestão ou a acabar a sua missão no mero momento de dar; ou porque a instituição para aquele caso específico não existe naquela área, e as instituições existentes estão a prestar um serviço paliativo para não estarem sem fazer nada, conscientes de que não estão preparadas para abordar o problema.
Já sabemos que uma parte dos pobres trabalham e as mulheres e famílias mono-parentais são das mais vulneráveis. A existência de deficiência ou de algum problema de saúde mental só aumenta a vulnerabilidade. O desemprego aumenta o risco de exclusão social, tal como o baixo nível de educação. Um soma ao outro.
Porém, existem casos bastante mais complicados. Há pessoas que são, aparentemente, bastante saudáveis: “com corpo para trabalhar”, segundo as más línguas. No entanto, têm problemas de saúde mental que as torna difíceis de inserir no mercado de trabalho. Isto tem um efeito perverso porque as torna mais dependentes, e por vezes não crescem de certos hábitos, tendo indivíduos perfeitamente conscientes dos seus problemas mas terrivelmente indisciplinados para lidar com eles. Se não acompanhados desde cedo, a idade adulta torna-se uma vida de auto-sabotagem. Apesar de melhoras na sociedade, não é tão raro o adolescente que hoje vai ao médico para pedir uma ajuda ou uns conselhos para onde se tratar, e a resposta que ouve é “arranja uma namorada que isso passa”, e passam um Valdispert. A atitude de muitas CMs é igualmente de desprezo: “quem é pobre não quer trabalhar, que vá jardinar”. O “machão” do pedaço dirá que “depressão é para quem não quer fazer nada”. Na prática, quando incentivamos as CMs a inserir estas pessoas no mundo do trabalho – cada vez mais impiedoso – não existe resposta.
Agora pensamos: a solução para isto é criar plataformas e espaços físicos para psicólogos acompanharem pacientes ao abrigo de um programa – seja pago ou pro-bono. Mas a existência de um psicólogo não garante que quem necessita vá tirar proveito de serviço. Tem de haver um ambiente comunitário, acolhedor, que incentive passivamente – publicidade, avisos, anúncios – e ativamente – acompanhamento pessoal. A depressão é uma espiral que requer apoio exterior com uma vontade própria para pedir ajuda. Um casal com sérios problemas raramente escolhe terapia, quanto menos abordar o problema em questão. Não se pode esperar que casos como esquizofrenia, bipolaridade ou mesmo violência doméstica tenham a simples vontade de procurar ajuda, especialmente quando a comunidade não é um sítio seguro ou está amorfa. Aquelas rivalidades e birras dentro das comunidades religiosas, e a sabotagem entre instituições garantem que as pessoas dentro delas não estejam preparadas para prestar serviço.
Chega-se ao ponto que se dá esmolas a instituições que não vão estar presentes quando chegar a nossa vez de serem ajudados. Momento que vai chegar.
Uma Nova Realidade
As IPSS e CM concordam que os tempos vão piorar, mas CM são as únicas mais otimistas por motivos óbvios. É um trabalho de longo prazo, com consistência e incentivos constantes. Existe sempre a grande opção do internamento compulsivo, coisa que as CM não querem no currículo, mas há sempre os “racionais” que se lembram das pessoas como se fossem animais sem dono.
Perdoem-me alongar-me tanto, mas esta atitude de “ajudar o pobrezinho” nivelando por baixo tem de acabar. O inferno está pavimentado de boas intenções. As comunidades têm de se reunir e abordar as suas experiências e realidades específicas. Então devem ser atraídas as pessoas com o conhecimento certo, para o problema em concreto, e se possível, incluir a geração mais nova no processo de reabilitação da comunidade (mesmo de forma indireta como angariação de fundos, programas de voluntariado).
Na região centro, por exemplo, há Conferências Vicentinas com dificuldades em abordar as IPSS, não conseguindo estabelecer canais de comunicação. Há IPSS que não estão em bons termos com as CM, e estas aproveitam para alocar os fundos para outras coisas. Vá, eu digo: em Portugal ajuda sempre ser militante de um partido e participar no plenário. Mas não vou entrar nesse buraco.
Há concelhos onde o problema está a ser abordado de forma eficaz embora a luta seja uma constante. Em comparação aos números nacionais, os números municipais são melhores em vários casos, mas no terreno comenta-se que a casa de cartas está para cair. Isto porque embora tenha havido uma melhora na distribuição de rendimentos monetários, agravou-se o acesso à educação e à saúde. As políticas públicas e as comunidades têm de trabalhar em conjunto para assegurar estes serviços no sentido do desenvolvimento do crescimento.
PS: obviamente falo das experiências, dados e conversas nos concelhos onde estive a abordar os problemas. Deixo os nomes desses concelhos de fora para não distrair do tema e das entidades em questão.