Começar o ano a fazer uma introspetiva e refletir sobre os objetivos, as metas, os desafios não é de agora, mas agora está muito na moda. As redes sociais convidam-nos a recordar tudo o que publicámos ao longo ano, os vídeos mais virais, o top de músicas mais ouvidas, as fotografias mais bonitas. Por estes dias iremos encontrar milhares de conteúdos passando o ano de 2023 em revista – quer das empresas que nos inspiram, das influenciadoras que seguimos fielmente, quer dos familiares que já não vemos há vários meses.
Geralmente, nestas reflexões, ninguém tem anos “maus”. Têm muitos desafios, obstáculos, algumas dificuldades e “barreiras que ultrapassaram”, mas nunca anos maus. Assumir os erros, assumir que se esteve no fundo do poço, que se disse o que magoou, que se fez coisas sem pensar, fica normalmente substituído pelos melhores momentos, em que a vida foi mais feliz e, diria até, mais “instagramável”. De fora deste recap, mas sobretudo fora da reflexão, ficam os dias em que não fomos bons connosco nem com o mundo: os dias em que julgámos o nosso corpo no espelho e comparámos a nossa timeline real com o feed extremamente curado e perfeito daquela figura pública; os dias em que chorámos até adormecer e que levantámos a voz ao nosso colega do escritório.
Temos sempre facilidade em partilhar, quando as coisas nos correm bem. Engraçado como isto é quase sempre paralelamente inverso à nossa vontade, capacidade e quantidade de vezes que efetivamente felicitamos o outro pelos seus sucessos. Somos sempre muito rápidos a apontar o dedo quando alguém falhou, mas ao mesmo tempo ainda mais rápidos a omitir os nossos próprios fracassos. Até no nosso dia a dia, connosco: se deixamos cair um copo que depois se parte, imediatamente estamos a chamar-nos de estúpidos, a dizer asneiras e a ofender-nos. O mesmo acontece quando cometemos um erro no trabalho e a nossa mente fica estampada com o rótulo de “incompetente”. E depois fazemos o mesmo aos outros, aos nossos colegas que cometem erros, aos familiares que chegam atrasados ao jantar, aos amigos que se esqueceram do compromisso.
Quando recebemos elogios ao nosso trabalho, coramos sem saber o que dizer e, quando os nossos colegas fazem um bom trabalho, poucas vezes somos capazes de os parabenizar, alto e a bom som. Dizer “gosto muito de ti” ao nosso pai, ouvi-lo dizer-nos isso. Dar aquela reação ao story da amiga com quem já não falas há meses, comentar um post que te fez sorrir. É sempre mais fácil guardar estes pensamentos, estas pequenas alegrias e não as partilhar porque “vou estar a chatear” ou porque “é demasiado cringe”. Que pena que assim seja.
Estes “recaps” são também muito propícios para demonstrar a gratidão que ao longo do ano esquecemos. A gratidão pela vida que temos, pelas oportunidades que nos surgem, pela paz, pela saúde e até pelas pequenas coisas – aquelas que sabemos que são as grandes.
Que o novo ano nos traga mais vezes a lembrança de sermos gratos. Que nos traga também mais facilidade e vontade de partilhar os nossos dias maus, não só os menos bons, mas os verdadeiramente maus. Que nos traga ousadia para felicitar o outro e para nos encorajarmos a continuar. Que tudo isso nos faça sentir menos sós no mundo. Afinal de contas, andamos todos a tentar perceber o que estamos a fazer.