A sociedade consumista não é apenas responsável pelo problema ambiental que temos em mãos. A ideia de que tudo é substituível e que basta comprar novo tem consequências além do materialismo. Alguns dizem, até, que é mais fácil comprar do que arranjar.
Pelos dados do Pordata, em cada 100 casamentos, 91,5 dão em divórcio (o mais alto desde 1960). O que se passou para o e viveram felizes para sempre desencadear um processo de separação? O que se passa nas relações? É só nos casamentos? Foi notícia de que Portugal é um dos países europeus que mais abandona os idosos e até se noticia que o esquecimento é um dos motivos pelos quais os idosos passam festividades familiares, como o natal, nos hospitais. Além disso, a APAV relata que, em média, quatro pessoas idosas são alvo diário de violência (a maioria do sexo feminino e com idade média de 76 anos).
O caso das pessoas idosas é interessante para a análise. Devido ao avanço da idade e, muitas vezes debilidades de saúde, essas pessoas tornam-se mais dependentes e precisam de mais atenção. Essa necessidade é tão humana quanto dedicar tempo a um bebé que depende de nós. Contudo, raramente comparamos estes dois cenários. Um bebé é querido, ri e tem olhos grandes; uma pessoa idosa tem pele flácida, queixa-se mais e quando sorri, por vezes, tem alguns espaços vazios entre os dentes. Acima de tudo, nunca comparamos os dois cenários porque no primeiro, o bebé é símbolo da força criadora da vida e, no segundo, temos alguém que não se enquadra nos padrões sociais de juventude e beleza1 da nossa sociedade.
Com a (nova) aprovação pela Assembleia da República, o Presidente da República, foi obrigado a aprovar a Lei da Eutanásia. É verdade que a legitimidade representativa da Assembleia da República sobrepôs-se, mas também é verdade que durante as últimas campanhas eleitorais este tema nunca foi mencionado ou discutido, fazendo com que a lei fosse aprovada através de um jogo parlamentar de maioria.
O problema da eutanásia coloca um outro questionamento: que vida queremos, ou não, viver quando envelhecermos ou ficarmos incapacitados? O desenvolvimento da medicina e das condições de higiene promoveram o aumento generalizado da esperança média de vida. Vivemos mais do que os nossos antepassados e, provavelmente, os nossos descendentes viverão mais do que nós. Porém, numa sociedade na qual o ideal da juventude e da saúde vigorosa impera, o que fazer com as pessoas que não se enquadram?
Não irei discutir se a eutanásia é boa ou não, se se deve aprovar ou recusar. Muito já foi dito sobre este tema e, em essência, é um assunto estéril. Na verdade, o tema da eutanásia é uma escolha social sobre o que fazer com as pessoas mais velhas ou incapacitadas. Por outras palavras, trata-se de uma consequência da forma pela qual olhamos para os incapacitados e pessoas idosas e é sobre isto que se deve discutir.
Adoto, neste sentido, uma posição na qual as vontades individuais são moldadas pelo contexto cultural onde os indivíduos foram socializados e enculturados. Por exemplo, ao contrário do que possamos pensar, os padrões de beleza não são criados individualmente, mas socialmente. É na sociedade ou comunidade que o valor Belo se cria e reproduz pelos elementos dessa mesma sociedade/comunidade. Veja-se o ideal de beleza que Fatimah Khanum (ʻIsmat al-Dawlah), princesa persa no século XIX, representa; em alguns países asiáticos quanto mais clara for a pele, mais bonita se considera essa pessoa, por oposição a alguém de pele bronzeada2.
O capitalismo que emerge em meados do século XX assenta no consumismo e na troca rápida e pronta de tudo o que já não vale. Não interessa muito tentar reparar, porque é mais fácil e melhor ter novo. Estas atitudes, ou seja, predisposições para agir de determinada forma, foram transportas para as relações sociais.
Tempo é dinheiro, é uma frase comum que escutamos. Estamos sempre ocupados com algo. Vivemos numa corrida de trabalho, casa, trabalho, porque de algum modo as despesas sempre parecem se aproximar dos rendimentos (por vezes até os ultrapassam!). Pensamos que vivemos numa sociedade muito evoluída, contudo, até um índio tem necessidade de trabalhar (muito) menos do que nós. Passar menos tempo a trabalhar, permite que dedique mais tempo para a convívio em comunidade ou a fazer alguma atividade que lhe agrade. No nosso caso, nem tempo para nós mesmos temos, quanto mais para escutar os lamentos de alguém mais velho e resmungão?
O paradigma é simples: viver para trabalhar ou trabalhar para viver? A triste realidade é que nas nossas sociedades vivemos para trabalhar porque estamos presos nesta lógica de acumulação, muitas vezes supérflua, da qual não conseguimos sair e que se reflete na falta de tempo para as nossas relações ou nós próprios. Se trabalhássemos para viver, bastar-nos-ia o suficiente com que nos sustentar e, aí, poderíamos passar mais tempo a fazer o que gostamos, com quem gostamos e com quem ainda nem conhecemos.
Todos sabemos que o capitalismo nunca teve interesses sociais, como se observa pelo emprego de crianças em fábricas ou minas no passado, mas também hoje em dia em minas de cobalto. A transposição do espírito capitalista da esfera económica para o domínio das relações sociais trouxe alterações profundas. Cada pessoa passa a ser um ativo ou passivo, ou seja, algo com que eu possa beneficiar ou que não me traga benefícios. Talvez esta seja uma descrição muito simplista da complexidade onde nos inserimos. Mas, se o Selvagem do Admirável Novo Mundo visse como e por que vivemos, o que ele diria?
A questão não é se a eutanásia deve ou não ser aprovada; se é boa ou má, porque isso é uma consequência de outras perguntas que nunca as colocamos: que futuro queremos para as pessoas incapacitadas ou idosas, logo vulneráveis, da nossa sociedade? Que vida queremos para nós próprios?
Já foram feitos imensos avanços na medicina, porque é que não se investe mais em melhorar os tratamentos de cuidados continuados ou a procura de soluções para problemas que aos interesses farmacêuticos não lhes convém porque não é tão lucrativo? Quantas pessoas escolherão a eutanásia porque a sociedade na qual vive não lhe possibilita alternativa de viver uma vida digna? Porque é que uma pessoa incapacitada tem de ficar condenada a uma prisão domiciliária? Por isso, a questão que interessa não é se a eutanásia deve ou não ser legalizada.
1Esta publicação da L’OREAL é um claro exemplo, quando dá a solução para ter pele de bebé, ou seja, “macia, radiante”
2As origens culturais desta distinção entre pele clara ou bronzeada assenta na estrutura de classes sociais. Os trabalhadores braçais, como os camponeses, por passarem mais tempo ao sol, a sua pele era mais morena, relacionando-a como símbolo de pobreza. Quanto à pele clara, era sinónimo de alguém pertencente à nobreza, que não estava em condições sociais iguais aos camponeses. A cor da pele tinha subjacente um ideal de beleza associado às condições económicas dessa pessoa e, consequentemente, à classe social de pertença.