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Que nome dás à tua dor?

És uma sombra à beira de um rio gelado. Gelado e instável. E tu imóvel na outra margem, estás tão longe e o dia está tão escuro que mal distingo se me olhas ou me dás as costas, como um castigo, colocando uma distância maior entre nós, mais do que física, mais do perigosa, mais do que emocional. Uma distância que é uma cegueira, o afastamento de quem não quer mais ver, a lonjura do esquecimento. Mas não. Não me dás as costas – o teu olhar queima-me, e sei então que me fitas. Pergunto-me com que emoção, com que pensamentos me olhas, que arrepios são estes que me queimam ao saber que a tua vista pousou em mim. Estico o braço, abro as mãos, estendo os dedos para te tocar. E estás tão longe, mesmo estando sentada ao meu lado.

Entre mim e ti, esse rio que desejo atravessar.

Durante tanto tempo foste espelhos partidos e fantasmas de labirintos. Absurdamente complicada. Eu gostava que fosses assim, a simplicidade sempre me enervou. Ou aborreceu. Eu gostava das tuas inexplicabilidades e contrariedades, por vezes eras feita de aguarelas, por vezes eras luz ténue na noite. Tinhas expressões tristes que eu tentava salvar da negrura. Mas nunca me revelaste: que nome dás à tua dor?

Coloco o pé no gelo, tentativamente.

Afastas-me.

Recuo.

O receio faz-me voltar ao passado. O passado cheira-me sempre a tristeza. O cheiro das memórias tristes, das gargalhadas que já foram e de risos que me assombram. O teu cheiro preso aos meus movimentos. O teu cheiro transformado em casa, em oxigénio, em pensamento. O teu cheiro em todo o lado, preso aos cinco sentidos – obriga-me a sentir-te, ouvir-te, saborear-te.

Não quero saber.

Salto para gelo, corajoso. Penso por segundos que vou cair, que debaixo dos meus pés a invernia me vai engolir, mas aguento. Aguento. Agarrei-te nos dedos e tu deixaste-me tocar-te.

Corro pelo gelo, desaurido. Quero chegar a ti, pareces-me sempre mais longe, os cinco metros são cinquenta e afinal não és tu que me esperas na margem, são florestas escuras que não conheço. Até que te viras para mim.

Ontem à noite, o teu olhar aleijou-me, murmuras.

Ontem à noite, também o teu olhar me aleijou, respondo-te.

Ontem aleijámo-nos. Porém, só na madrugada nos chegou a dor. Nenhum de nós dormia. Não havia luz que entrasse por entre as folgas das persianas, apenas a realidade que nos pesava no peito, que nos prendia à cama, que nos fazia doer a pele e pensar, tão juntos quanto afastados, “e agora?”. Sentias-te a afogar no “e agora?”, confessas. Eu também. Conhecemo-nos tão bem, pensamos nós. Sei mais de ti pela maneira como mexes as mãos, como enrolas os dedos, como tocas devagar no cabelo ou nas orelhas. Nesses momentos, iludo-me com a certeza de que te conheço, enquanto observo o caracol que o teu cabelo faz ao pé do pescoço, enquanto vejo o teu braço arrepiado, enquanto me lembro do teu umbigo à luz do dia ou da tarde ou da lâmpada amarela que pinta sombras na tua pele. Distrais-me com palavras a noite inteira. Oiço-as todas, mas contas-me mais segredos com esse brilho triste nas tuas pestanas do que aqueles que percebo na tua voz, nos teus sorrisos, nas rugas que começam a nascer.

É de madrugada de novo quando finalmente me deixas abraçar-te.

Há vinte e quatro horas, estávamos feridos um do outro, um com o outro. Neste instante, já não. Atrás de nós, o gelo quebrado flutua e é um final de inverno, é um tempo auspicioso. Blocos de gelo que parecem menos ameaçadores e menos perigosos. Nós abraçados, o teu cheiro tão real, e atrás de nós blocos de gelo que são “E agora?” repetidos e repetidos e repetidos, e que talvez – suplico, suplico, suplico – possam derreter em breve.

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