Os dedos tremiam-lhe quando abriu uma lata de atum para juntar ao feijão frade. Sentia o coração descompassado, os movimentos eram incertos, custava-lhe pensar. Do quarto da velhota chegava o som demasiado alto da televisão. Coçou a sobrancelha e fez um trejeito com a boca, sabia que provavelmente tinha corado de vergonha. Levou o prato para a mesa e sentou-se ao pé dos filhos. Observou-os. Eles sorriram. Nos olhos tinham uma tristeza que ele fingiu não ver.
“Então?” a voz a falhar com a pergunta vaga, o medo da liberdade de eles poderem responder o inesperado. Ou pior, o esperado.
“Bem!” o rapaz sucinto, uma resposta sem nexo dita num tom demasiado acima de entusiasmo forçado.
“Pai, estás contente?” a preocupação sem rodeios da rapariga.
Ele anuiu com um nó na garganta e levou à boca uma garfada de feijão, para se impedir de chorar.
O som da televisão.
As memórias eram uma presença que planava sobre as suas cabeças, por vezes tocavam-lhes nos cabelos, sentavam-se à mesa com eles e lançavam um lençol invisível que os cobria de silêncio gordo e opressivo.
Quando o pai saiu de casa, a mãe estava à janela. O pai olhou para a mãe com os olhos carregados de brilhos que os devastaram. Ajudaram-no a colocar as duas malas no porta-bagagens. Uma vida inteira reduzida a duas malas apenas (e a muitos pesos no espírito, mas isso eles só podiam adivinhar). O pai acenou-lhes quando partiu. Eles não foram capazes de enfrentar uma casa que agora seria só da mãe.
A barba estava por fazer, mas ele tinha vestido as melhores calças e a melhor camisa para os receber. A casa era húmida, sentia-se logo ao respirar. Humidade e solidão que entravam pelas narinas e invadiam os pulmões. A televisão da velhota que lhe alugava o quarto estava sempre num volume próprio para todo o prédio, mas ela deitava-se cedo e a partir das nove o silêncio era total. Brutal. Sádico. Ele não sabia se preferia esse silêncio que o abandonava a sós consigo ou o barulho confuso que, absurdamente, permitia que ele se distraísse do que se tinha tornado a sua vida.
“Pai, sabes que podes ficar em minha casa.”
A brutalidade da filha era também um espelho.
Ele quis dizer: Obrigada, mas tens a tua vida, eu sou teu pai e não te quero dar trabalho. Desculpa. Tenho vergonha e tristeza e emoções tão gigantes que nem sei nomeá-las. Por vezes, comem-me completamente. Há noites em que choro. Há dias em que não sei o que fazer.
Ele quis também dizer: Sim, sim, quero, preciso de estar contigo, com vocês, de voltar a ser eu. Leva-me, leva-me daqui.
Mas disse: “Não é preciso, não te preocupes.”
Ela quis dizer: Mas eu quero. Eu preciso e tu também. Vem, pai, por favor, quero que sejas feliz, vem comigo para casa. Não saio daqui enquanto não vieres. Este não é o teu lugar. Vou cuidar de ti. Não tenhas vergonha, quero-te comigo, quero-te em casa comigo.
Mas calou-se.
E entre eles meteu-se uma cortina opaca de cordialidade ou de diplomacia ou de vergonha mascarada de respeito.
Ela sabia que ia chorar assim que ficasse sozinha.
O filho não conseguia deixar de pensar no armário reservado para o pai naquela cozinha de uma casa estranha, cheio de latas e de comidas pré-feitas, numa procura desesperada de um lar que já não existia, de um novo lar que o pai não sabia como criar. E doía-lhe tanto que não conseguia respirar, nem engolir, nem olhar para lugar nenhum. Sentada à mesa mesmo ao seu lado, a presença das memórias da vida em família quase o queimava, torturava as suas emoções. Ele concentrava-se no seu prato de feijão frade. Queria chorar de impotência e de raiva, nem sequer ia conseguir desabafar com a irmã porque assumir em voz alta seria tornar tudo mais dilacerante e real.
“Pai.”
Não sabe se pensou ou se disse alto. Mas ninguém reagiu.