A família não se escolhe. Nem os vizinhos. Nem os colegas de trabalho. O que é uma pena em qualquer dos casos, mas especialmente aborrecido para o único que não podemos alterar de forma nenhuma: aqueles com quem partilhamos o sangue.
Há quem não mudasse um único primo afastado da sua árvore genealógica e há quem, se pudesse, apagasse da existência a própria mãe. Confesso sentir uma certa inveja dos primeiros, mas ao olhar para os segundos, elevo as mãos aos céus em agradecimento pelo que a vida me reservou. Acho que é uma questão de sorte.
A pergunta é: e quando não temos sorte? Até que ponto é legítimo ou condenável cortar de forma definitiva o contacto com um ou mais elementos da família? Serão os laços de sangue razão suficiente para aceitarmos o (tantas vezes) inaceitável, ou, exactamente pela existência dessa ligação especial, devemos ser mais exigentes e menos tolerantes? Acima de tudo, quem passamos a ser quando se rasga a rede que nos devia sustentar e perdemos as referências que nos guiavam o caminho?
Para lá das razões que possam existir, para lá do certo e do errado, o corte com a família – toda ou parte dela -, atira-nos para um lugar de perda e frustração. No puzzle que é a nossa vida, ficam a faltar peças e, mesmo sabendo onde as encontrar, deixa de fazer sentido continuar a juntá-las à nossa história. Como se o puzzle fosse a cores e as peças descartadas estivessem apenas disponíveis em preto e branco.
Fala-se hoje muito de relações tóxicas e da importância de as saber reconhecer e agir sobre isso. Serve para todo o tipo de relacionamentos e serve também para as relações familiares. Não estamos a falar das piadas inconvenientes que o tio paterno faz sempre nos jantares de natal, depois de já ter bebido três copos de vinho. Isso merece pouco mais que um revirar de olhos e o desejo de que o próximo convívio se faça daí a um longo tempo. Estamos a falar de relações que nos magoam, nos ferem ou humilham. De pessoas que vivem nos antípodas dos nossos princípios e valores, de quem nos prometeu tudo e acabou por não nos entregar nada, de quem nos atormenta os dias, ao invés de os tornar mais leves. Nesses casos, o que mais nos poderá restar senão quebrar os laços que julgávamos inquebráveis, assegurando a nossa própria sobrevivência, quanto mais não seja, mental.
Ainda que a solução não seja outra, há uma parte de nós que se quebra. Há uma culpa que carregamos e nos atormenta e uma dúvida que nos persegue: como seria, se fosse diferente?
Quando aquela que deveria ser a nossa rede não nos sustenta, há que encontrar outras redes que nos amparem o caminho. Com sorte, a vizinha da frente é uma alma maternal e o colega de trabalho o amigo que procurámos toda a vida. Com sorte, criamos a família com que sempre sonhámos, porque o amor acontece na alma e não no sangue.