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Pós de felicidade

Na infância e adolescência, a contagem do tempo tem outro rigor, ou outra métrica. O importante era que tudo funcionava de maneira tão certinha que seria impossível os desejos não se realizarem. Casa cheia de gaiatos que ainda sonhavam com impossíveis que cheiravam a doce e a muita alegria. Casa onde a vida pulsava e se renovava a cada instante. Família grande e unida. Mesmo com dificuldades, tudo se ia conseguindo e o pouco que havia era mais do que suficiente.

Esperávamos ansiosamente pelo sábado à noite. Era mágico. Os fins de semana serviam para a reunião familiar, para juntar todos os que a vida tinha separado fisicamente. Terras distantes que obrigavam a vários transportes ou, num mero acaso da sorte, uma boleia de alguém conhecido. Ter um automóvel era coisa de ricos e nem se pensava no assunto. Para quê? O frigorífico ainda não estava pago e enquanto houvesse essa dívida nada mais havia a ser sonhado.

Aos sábados chegavam os tios e primos e a alegria era tão genuína que valia a pena todo o esforço da separação. A casa era suficientemente grande que permitia a pernoita com conforto e sem incómodo. As vozes, quais compotas de sons que se colocavam, não em taças ou frascos, mas sim em pequenos compartimentos que se ajeitavam no coração, eram deliciosas. Sinfonias tão desafinadas, mas que soavam tão bem e adormeciam as dores.

Muitas comidas, barulhos e conversas que não entendíamos ou não nos interessava. Os mais novos tinham códigos especiais e entendiam-se na maior das perfeições. Criávamos uma gramática que só os escolhidos tinham acesso. Fazíamos caramelo, muito meloso, na pedra da mesa da cozinha e lambíamos os tachos onde os bolos eram feitos. O arroz-doce, fumegante, enchia as narinas e a casa. Colocar a canela era um ritual que só a tia e a sobrinha podiam partilhar. Elaboravam desenhos geométricos e riam tanto que não se notava a diferença de idades.

Contudo, a noite era o ponto alto. A televisão era a protagonista principal e tudo acontecia em seu redor. Depois do jantar comido e da cozinha arrumada, todos estavam na mesma divisão. Os adultos sentados no sofá ou em cadeiras e as crianças deitavam-se em almofadas que estavam colocadas, estrategicamente, no chão. A vontade era ter pufes, mas as contas que ainda não estavam quitadas faziam esquecer estas ambições que todos, secretamente, tinham.

Havia sumos, tremoços e aperitivos espalhados em pratinhos onde cada um debicava sem se aperceber. Os miúdos chupavam sugos e rebuçados na ânsia da chegada do programa preferido: Os Jogos sem Fronteiras. O Eládio Clímaco entrava na nossa casa, com a maior das familiaridades, e tinha toda a nossa atenção. O olhar não se desviava do écran e os jogos eram vividos com intensidade! Que tempos de emoção onde a gravação correspondia ao normal.

Ambicionava ser como a Ana Zanatti, sempre imperturbável e correta, com a resposta pronta para qualquer pergunta. A sua elegância era comentada ao mais ínfimo pormenor. E o olhar enigmático ficou-me sempre colado à mente. Era perfeita! A tia copiava-lhe os modelos e passava para as suas clientes. Um manancial. E o par com o Eládio funcionava como nos filmes. Um final feliz. Penso que desejei sempre o beijo, aquele que fica para sempre! Que tola!

A noite era outra aventura, com guerra das almofadas e tantas conversas que se prolongavam até horas que não sabíamos. Eram as confidências, os momentos de intimidade onde se revelavam os segredos, os amores que se delineavam e as tragédias que se iriam viver. Uns ainda sonhavam com montanhas altas onde viveriam sozinhos e felizes e outras sabiam que não existiam nem palácios nem príncipes. Era o crescer que se agigantava.

Finalmente o sono vencia todos e o silêncio dominava a casa. Sentia-se a calma a rondar aqueles que sabiam aproveitar todos os momentos e um murmúrio de suavidade, funcionava como um véu mágico que os protegia. Podia ter um qualquer nome, mas o que melhor lhe ficava seria o de felicidade, um pó que salpicava todos e os levava diretamente para o mundo dos sonhos, aqueles que só os justos e puros conseguem ter.

A noite era suave e terna, onde os sonhos se levantavam e as espadas eram soltas, os arcos e as flechas acertavam os alvos, às bonecas cresciam os cabelos, as palavras faziam todo sentido e os beijos, como nos filmes, faziam fechar os olhos e levantar o pé direito. Caraças! Como era fácil e todos ainda eram vivos!

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Estava a ler um romance quando lhe entrou uma prece pelo ouvido

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