Vi pela primeira vez o portão para o céu quando olhei pela janela do meu quarto, logo depois de acordar. Tive de olhar várias vezes para estar certa de que estava a ver algo real e não estava a sonhar ou imaginar. Vesti o robe, calcei as pantufas e saí do apartamento, sem ligar às aparências. Desci as escadas e abri a porta da rua, para ver melhor.
À minha frente, em plena cidade de Lisboa, estava um portão enorme que dava para uma montanha qualquer. Ali, do nada, chegado de algum lado misterioso a uma qualquer hora oculta.
Eu olhava, ainda sem saber como acreditar no que os meus olhos me mostravam. Poderia ser uma alucinação? Poderia eu ter um problema qualquer no cérebro, sem saber? Senti uma presença silenciosa ao meu lado e virei a cabeça de repente. Colada a mim, estava a minha vizinha cega, que vivia no segundo andar. Não me tinha apercebido da chegada dela, tranquila e astuta como um gato, conhecia o mundo como a palma da mão. Eu desconfiava, até, que era bruxa – no melhor dos sentidos. Alguém com uma visão interior extraordinária.
Ela sentiu que eu olhava para ela. “É o portão para o céu”, explicou-me. Foi quando soube como se chamava aquilo que eu estava a ver.
Ela olhava para o portão como se o conseguisse ver. E eu olhava para ela, sem saber se estava mais chocada com o facto de ela parecer ver tão bem como eu (ou melhor) o que eu via à nossa frente, ou por descobrir que não era uma alucinação, que aquele portão estava mesmo ali. Um portão que guiava a um precipício e a uma montanha. Uma montanha qualquer. Para mim, podia ser o Monte Sinai ou a Serra da Estrela – eu não percebia nada de montanhas.
Por alguma razão, quando ouvia a música de Led Zeppelin, “Stairway to Heaven”, sempre imaginava a minha vizinha como a mulher que comprava a escada para o céu. Não, minto; ela não se deixaria enganar. Ela não compraria nada, ela construiria uma escada para o céu. Coincidências? O mundo tinha formas estranhas de trabalhar e de nos surpreender.
“Que profecia será esta?” perguntou baixinho a minha vizinha, como se falasse consigo própria.
Eu não percebia nada.
De repente, ela olhou para mim. Pegou na minha cara e virou-me a cabeça para ela. Queria olhar para os meus olhos, queria olhar para algo dentro de mim que eu não conhecia. Eu observei-a, assustada. Ela olhava mesmo para mim, não havia nenhuma cegueira entre nós. Bom, talvez a minha cegueira de alma, que não compreendia nada do que estava a ver, mas nenhuma cegueira física.
Física.
A cegueira dela era física.
Libertei-me do toque dela e olhei para o nosso prédio. Desfazia-se em pó. Perante os meus olhos, como que explicando o mistério que me tinha confundido, desfez-se até só sobrar um monte de pedras no chão, aos meus pés. Foi também nessa altura que vi as pessoas que corriam para todos os lados em desespero, aos gritos, magoadas. Bombeiros e polícia tentavam tirar algo dos escombros. Tentavam tirar pessoas, supus eu. Tentavam tirar corpos. Algo de errado se tinha passado no nosso prédio. Apercebi-me pela primeira vez do silêncio impossível que tinha estado segundos antes, enquanto a minha vizinha e eu olhávamos para aquele portão e nos perguntávamos o que significaria aquilo.
E mesmo antes de ela me agarrar a mão para me guiar, mesmo antes dos bombeiros tirarem os nossos corpos de entre o pó, eu soube que tínhamos morrido.