Populações abandonadas, Doenças Esquecidas

Negligenciar. Segundo o Dicionário Porto Editora, é um verbo transitivo que pode significar:
1. Não dar atenção a; não dar os devidos cuidados a; tratar com desleixo; descurar.
2. Omitir; Esquecer

Os relatórios da Organização Mundial da Saúde estimam que há, no mundo, 1 bilião de pessoas atingidas pelas chamadas Doenças Negligenciadas, enfermidades que representam 11% da carga mundial de doenças e que são responsáveis pela morte de milhares de pessoas todos os anos. São um grupo de doenças que são causadas por três tipos diferentes de microrganismos: as bactérias, os parasitas e os vírus. Também são conhecidas como “Doenças Desatendidas”, ou “Doenças Esquecidas”, mas, apesar destes nomes, tão chamativos, não conseguem chamar a atenção suficiente.

São doenças principalmente tropicais e cumprem três requisitos para serem classificadas como Doenças Esquecidas:

  • Afectam de forma desproporcionada países emergentes
  • Não existem meios adequados para o seu tratamento e prevenção
  • Afectam pessoas, tão pobres, que estas acabam por não ser um mercado suficientemente atractivo para atrair a atenção da indústria farmacêutica.

Muitas destas doenças causam a morte e a maioria produz profundos danos físicos às pessoas que as contraem, obrigando-as a dedicar enormes quantidades de tempo, dinheiro e energia para poderem continuar com algo que se pareça com uma vida normal, isto, se não acabarem por morrer.

Como poderiam as pessoas das seguintes fotografias continuar com os fazeres do dia-a-dia?

À esquerda, mãos de pacientes com Lepra, no meio pés de paciente com Elefantíase e à direita, olhos de paciente com Oncocercose.
À esquerda, mãos de pacientes com Lepra, no meio pés de paciente com Elefantíase e à direita, olhos de paciente com Oncocercose.

Por causa das deformações de que são alvo, as pessoas que sofrem estas doenças acabam por sofrer com a marginalização social nas comunidades em que vivem e são um enorme peso económico para as suas famílias, que, já sendo pobres, tentam cobrir os caros tratamentos. Em grande escala, num país onde várias pessoas sofrem estas doenças, elas acabam por afectar o seu crescimento económico, uma vez que não são capazes de trabalhar e de não serem produtivas economicamente. Forma-se assim um ciclo vicioso, onde a falta de desenvolvimento favorece a incidência destas doenças e estas doenças favorecem a falta de desenvolvimento. O pior de tudo é que a maioria destas doenças, se houvesse mais pesquisa, poderiam ser prevenidas, tratáveis e, em muitos casos, curáveis. Por atingirem tantas pessoas no mundo inteiro, são uma necessidade médica importante que permanece não atendida.

Oral cholera vaccination campaign, South Sudan, Maban, Dec'12/JaO tratamento destas doenças costumam ser caros, ineficazes, tóxicos e até mesmo inexistentes, pelo que o desenvolvimento de novos medicamentos e também de métodos de diagnóstico mais exactos são a chave principal para a erradicação destas doenças. Entretanto, a inversão económica e as pesquisas feitas são mínimas. Deve dizer-se que há bastantes trabalhos científicos sobre a biologia, imunologia e genética dos microrganismos ocasionadores destas doenças, mas não é possível reverter este conhecimento em novos medicamentos para a população afectada.

O sector público dos governos dos países afectados, as organizações de cooperação internacional e o desenvolvimento dos governos de países não afectados e das organizações sem fins lucrativos (como os Médicos Sem Fronteiras e a Drugs for Neglected Diseases Initiative) são as que encabeçam a lista de combatentes contra estas doenças, seguidos pelas indústrias farmacêuticas, que aportam unicamente 9.1% do total dos apoios na luta contra estas doenças. Para as indústrias farmacêuticas, não é rentável pesquisar em novos fármacos que não poderiam vender à escala mundial, pois as pessoas afectadas pelas Doenças Esquecidas têm poucos recursos e não podem comprá-los a um elevado custo.

As doenças nas quais há uma maior concentração de inversão da indústria farmacêutica são as chamadas Doenças Globais, que são um grupo grande de doenças, como os problemas cardiovasculares, o cancro e os transtornos mentais e neurológicos, e que que afectam tanto países desenvolvidos, como países emergentes. Porém, nestes últimos, os pacientes não conseguem pagar os medicamentos disponíveis e consequentemente o mercado também não os atende. São doenças mundialmente importantíssimas e que precisam de mais tratamentos e pesquisa. Sabe-se também que outra grande inversão da indústria farmacêutica, gigantescamente mais superior do que à concedida às Doenças Negligenciadas, são as pesquisas e tratamentos em torno de condições como a celulite, as rugas faciais, a calvície, as dietas, e o stress e que representam um mercado altamente lucrativo, nos países desenvolvidos.

MG_populacoesabandonadasdoencasesquecidas_1Um estudo publicado pela The Lancet Global Health estima que, dos 850 novos medicamentos e vacinas aprovados nos últimos 12 anos, apenas 4% deles, estavam destinados para as Doenças Negligenciadas. Para além disso, a maioria dos fármacos recentemente desenvolvidos são apenas versões reformuladas de medicamentos já existentes. Ou seja, nem chegam a ser uma nova forma de terapia. Das 336 novas formulações aprovadas entre o ano 2000 e 2011, apenas 4 foram para as Doenças Esquecidas. Destas, 3 eram para a Malária e a quarta que resta para doenças diarreicas. Para todas as outras doenças deste grupo tão esquecido, zero novas formulações.

Deve mencionar-se que, acrescentado a tudo isto, várias destas doenças coincidem geograficamente e, devido às condições ambientais e de qualidade de vida, não é raro que as pessoas comecem a sofrer de mais do que uma doença. Para além de coincidirem também geograficamente, com instabilidades políticas, guerras, fome, baixa qualidade de vida, falta de saneamento básico, sistemas sanitários pobres e ineficazes, o que agrava ainda mais a situação e pelo que o controlo destas é difícil.

São urgentes novos tratamentos com menos efeitos secundários, menos nocivos para a saúde e que tenham um período de tratamento mais curto, para facilitar a continuidade do tratamento até o seu fim, sem interrupção. Isto para não falar de que são necessários melhores métodos de identificação e de diagnóstico das Doenças Negligenciadas. Para conseguir resultados com estas doenças, é preciso uma inversão contínua e intensa. Todos (governos de diferentes países, centros de pesquisa, a indústria farmacêutica, entre outros) devem empenhar-se mais para salvar as vidas daquelas populações, que por terem poucos recursos, não são um mercado rentável para terem uma vida saudável.

Os nomes de cada uma das doenças deste grupo podem ser bem esquisitos, porém, alguns dos seus nomes já vimos algures, como é o caso da SIDA, da Malária e da Tuberculose. Outras podem não ter um nome tão reconhecível, mas isso não significa que nós devemos esquecer delas. São elas: o Kala-azar, a Doença de Chagas, a Doença do Sono, a Úlcera de Buruli, a Lepra, o Tracoma, a Bouba, o Cólera, a Dracunculíase, a Cisticercose, a Elefantíase, a Oncocercose, os vermes intestinais (Ascaridíase, Ancilostomose e Tricuríase), a Esquistossomose, a Fasciolíase, o Dengue, o Chikunguya e a Raiva, resumindo um pouco a lista de nomes extravagantes.

Nomes esquisitos que talvez façam com que caiam ainda mais no esquecimento estas doenças sumamente terríveis.
E tu, quantas destas doenças, tão excluídas, já conhecias?

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