Paradoxo da tolerância intolerante

No que toca às ideias existem posições diferentes sobre como ligar com elas: as más devem ser exterminadas e, se possível, nem mencioná-las; ou, falar delas tão abertamente quanto possível. Em qualquer dos casos é um equilíbrio difícil de gerir entre o que permitir, de modo a não ficarmos sem a liberdade e tolerância que temos atualmente, e como restringir a propagação de certas ideias que minam o aparelho democrático.

Uma das formas mais fáceis de lidar com as ideias que se consideram perigosas é usar do poder que se tem e proibir a sua existência. Claro que esta estratégia tem efeitos muito rápidos, mas pouco duráveis. A título de exemplo, podemos dizer que temos livre acesso às obras do Index ou qualquer livro censurado pelo Estado Novo, em Portugal.

A estratégia seguida pela Alemanha no pós-Segunda Guerra em relação ao nazismo, a sua ideologia e efeitos, é interessante. Por outro lado, na Rússia o Arquipélago Gulag tem livre circulação e qualquer pessoa pode ler sem receio de ser desterrada para paragens longínquas.

O problema, ainda assim, é mais complexo do que poderíamos imaginar. Se por um lado, a restrição de qualquer ideia é algo que não se espera de um regime democrático, por outro lado, permitir que as sementes da destruição desse mesmo regime brotem e ganhem raízes é censurável. Mais ainda, a razão nem sempre é convocada para o debate e troca de ideias, sendo a emoção quem toma muitas decisões (as compras desnecessárias por impulso são uma prova clara). Ou seja, embora saibamos que existem artimanhas retóricas que podem tornar apelativas certas ideias, não se espera uma atitude paternalista de se proibir que determinada ideia possa ser discutida. O que se espera é um ambiente propício à discussão.

A ideia da ágora enquanto espaço central da cidade onde se discutiam os assuntos públicos, parece-me, é o caminho para erradicar as ideias extremistas e erradas. Esta ideia aplica-se aos temas fraturantes numa sociedade. Mesmo sabendo que as emoções têm uma parte importante no processo de decisão, especialmente se estivermos inseridos num grande grupo, a verdade é que a participação nesta ágora apela sempre à racionalidade e a racionalidade apela ao conhecimento; o conhecimento apela à busca de informação, sendo a leitura um dos elementos essenciais.

É verdade que é um equilíbrio difícil de alcançar, como a História já o demonstrou. Contudo, o hábito da leitura, pensamento próprio e espírito de questionamento necessita de ser fomentado desde muito cedo. As crianças têm o hábito muito interessante de questionar: porquê? Estas questões são exaustivas ao ponto de ser necessário explicar coisas que eram dadas como verdades inquestionáveis; coisas e comportamentos que, quando pensamos melhor, (já) não fazem muito sentido. Quanto ganharia o mundo, cidade ou grupo em que nos inserimos se a cada ideia que se ergue perguntássemos até à exaustão (procurando saber legitimamente todos os ângulos e pontos de análise): porquê?

A forma de erradicar ideias erradas não está na capacidade de usar a força ou indicar o que é, ou não, aceite. A forma de proteger a democracia de movimentos extremistas, revelando o vazio das ideias apresentadas, é questionar. Isto é, debater essas ideias. Não de um ponto de autoridade face ao Outro, mas numa atitude humilde de questionamento e discussão. A atitude de proibir ideias intolerantes porque poderão colocar em causa o regime tolerante é, em si, uma forma de intolerância.

A ideia de democracia, logo de tolerância, não começa com a passagem para a vida adulta e a capacidade de poder votar. Começa com o hábito de leitura sem pudores (assuntos e autores), algo tão essencial para a arte de questionar. A proibição de discussão de alguns assuntos não resolve o problema, antes desvia o lugar de conversação para outros níveis, por vezes mais ocultos e, nessa altura, tal como uma doença, pode ser tarde de mais.

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