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Para além da porta

As nossas vidas podem ser portas entreabertas, onde se escondem os segredos mais recônditos, as verdades mais absurdas, as falhas e quedas que nos fazem pensar de forma atroz.

Em cada rosto que olhamos no café, no homem que se senta a ler o jornal todos os dias no metro, na mulher que às dezassete horas em ponto rega sempre as flores, existem mil e uma histórias que queremos guardar para nós, explorar, investigar, dissecar. E contar.

Cada ser humano é um contador de histórias. Todos nós somos verdadeiros cuscos. Quem nunca abrandou o carro para ver que acidente foi o que nos fez atrasar para o trabalho? Quem nunca comentou com a colega que a Maria João afinal já não está com o Zé, que foi um bandido, que a traiu precisamente com a Maria Antónia? Quem nunca?

Somos assim. Curiosos, espectadores, invasores. Mas nenhum de nós gosta de ser o invadido.

Desta forma, absorvemo-nos nas boas páginas de um livro, choramos quando vemos a nossa série favorita. Ao embrenharmo-nos nas histórias dos outros lembramo-nos das nossas próprias histórias. Identificamo-nos e às vezes, tristemente, esquecemos as nossas desgraças ao esmiuçar e partilhar a nossa versão das desgraças e aventuras dos outros.

Esta mania por vezes é tão forte que não escapamos a leituras vorazes de revistas cor de rosa, sonhamos com as viagens pagas e derretemo-nos ou zangamos com a vida amorosa, tão presentemente enfeitada dos artistas que amamos ou odiamos. E comentamos uns com os outros. Quantas vezes na casa da tia Madalena olhamos às escondidas as revistas que afirmamos jamais comprar?

Somos assim, porque somos humanos. Porque somos espelhos uns dos outros. Porque ao olharmos os outros olhamo-nos a nós, muitas vezes sem sequer nos apercebermos.

O problema é a falta de clareza. A nossa lacuna é quando não nos colocamos na pele do outro. Porque afinal, a Maria João que já não está com o Zé está a sofrer e, mesmo que não queiram acreditar, o Zé também, porque ninguém gosta de se separar ou do fim de uma história. A Maria João e o Zé afinal só queriam estar sossegados e não se sentirem observados quando cumprimentam a vizinha que os guia passo a passo quando sobem as escadas do prédio onde vivem ou quando se vêm expostos numa página de um jornal.

É normal supor o que se esconde dentro das portas de cada casa, de cada vida. Principalmente da vida de quem se expõe porque é figura pública. O que é chato é quando ela é exposta de forma absurdamente inventada e os alvos da espionagem se transformam em personagens de uma série que não é real. A nossa história deixa de ser nossa quando passa a estar na boca dos outros.

A invasão de privacidade é sempre igual, para o comum mortal ou para a celebridade inventada das páginas das revistas. O grau de invasão é que se requer diferente.

Quando vidas são esmiuçadas, esquecemo-nos da principal história à qual devíamos dar atenção: a nossa. E em vez de espreitarmos além da porta da vida dos outros, fechamos a porta principal e essencial: a que dá directamente para nós mesmos. Mas depois logo vos conto mais sobre ela.

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