+1 202 555 0180

Have a question, comment, or concern? Our dedicated team of experts is ready to hear and assist you. Reach us through our social media, phone, or live chat.

Palavras descruzadas

Palavras descruzadas, de Bagão Félix

Como dizia Pessoa, a “minha pátria é a língua portuguesa”. Pouco lhe importava que Portugal fosse tomado ou invadido, desde que não o incomodassem pessoalmente*. É um sentimento comum entre aqueles que amam a sua língua. O mesmo é dizer, neste contexto, que pouco importam os empréstimos de outras línguas, desde que língua portuguesa não saia prejudicada.

Contudo, o que vemos, ouvimos e lemos no dia-a-dia fere o orgulho que sentimos por esta instituição. A língua portuguesa sofre ataques diários, tal como se de uma guerra silenciosa se tratasse, e o malfadado Novo Acordo Ortográfico de 1990 (AO’90 para os amigos), cuja base etimológica foi preterida face à base fonética das palavras, caiu que nem uma bomba atómica na selva nacional.

A língua portuguesa sofre ataques diários, tal como se de uma guerra silenciosa se tratasse.

Estão a sentir o mesmo que eu? Pois é, caro compatriota que se importa com estas questões, este golpe não feriu de morte, mas provocou uma onda de choque considerável. E a dormência que se lhe seguiu permanece.

Estamos todos, os eruditos e os populares, ainda atordoados com essa explosão. Tanto assim é que, da estabilidade anterior com mais, ou menos, ferrugem, passámos para um desgoverno e uma anarquia ortográfica quase completamente oxidada. E a poeira radioactiva, essa, não há meio de assentar.

Às pessoas que ainda pensam que o «novo acordo ortográfico» é o antigo acordo ortográfico por ser de 1990: vão lá tomar um banhinho de água fria e quando voltarem terão aqui uma óptima sugestão de leitura.

Felizmente existem alguns compatriotas que reflectem sobre este assunto e são, ao mesmo tempo, excelentes comunicadores e notáveis figuras da nossa praça. É o caso do ex-ministro das finanças António Bagão Félix (que, já agora, segundo o próprio, pronuncia-se «félis»), que escreveu Palavras descruzadas, um livro no qual se propõe «descruzar» alguns equívocos relacionados com a língua portuguesa.

Para quem pretende aprender mais sobre o nosso idioma e evitar repetir os erros que se vomitam vezes sem conta nos meios de comunicação social.

A obra reúne uma série de reflexões que incidem sobre alguns erros, ambiguidades e mau uso de palavras e expressões, curiosidades, trocadilhos e figuras de estilo, modismos e estrangeirismos, entre outros. Inclui, também, um breve apontamento sobre o AO’90, que é o único defeito da obra: esse apontamento ser curto.

Capa do livro Palavras Descruzadas
Palavras descruzadas, de Bagão Félix

É um livro despretensioso e com alguma dose de humor, embora esse facto não diminua em nada o seu valor. Pelo contrário. É, a meu ver, uma excelente obra, embora ligeira e com um cunho muito pessoal, para quem pretende aprender mais sobre o nosso idioma e evitar repetir os erros que se vomitam vezes sem conta nos meios de comunicação social, e não só.

Muitas das preocupações que Bagão Félix se esforça por nos alertar na sua obra são, também, as minhas. Principalmente as que têm que ver com certos modismos mediáticos que, para além de errados, são bastante irritantes. Deixo-vos apenas alguns exemplos do livro, que aposto que vos são próximos.

Perda/perca
“A «perca» terá resultado de um erro de simpatia relacionado com a conjugação do verbo perder na primeira e terceira pessoas do singular do presente do conjuntivo, «que eu (ele) perca», ou na terceira pessoa do imperativo, «não perca a paciência!». Já no Nilo, se diria (…) «eu pesco uma perca, porque se não a pesco tenho uma perda sem a perca»”. Está tudo dito.

Humano/humanitário
“Enquanto adjectivo, humanitário significa que proporciona ou promove o bem-estar humano e social”, pelo que, no caso de uma tragédia com perdas (e não percas) de vidas, esta será, naturalmente, uma crise humana, e não humanitária. A ajuda que é prestada no seguimento dessa catástrofe é que qualificamos como humanitária.

Rubrica
Seja relativo a uma assinatura ou parte de um programa ou tema: “um erro que muitos profissionais da comunicação teimam em cometer, pronunciando este substantivo como palavra esdrúxula. Acontece que a palavra «rúbrica» nem sequer existe.”

Podia maçar-vos com dezenas de outros exemplos derivados de traduções de má qualidade, com equivalentes perfeitamente consagrados em português, como «compreensivo» (comprehensive) para qualificar algo que é exaustivo; «por defeito» (by default) quando aceitamos algo sem defeito, mas que foi pré-determinado, seja por omissão, inacção ou por pré-definição. Incorrecções importadas como o verbo «acessar» para aceder a algo; «usuário» para identificar um utilizador; «monitorar» para dizer monitorizar; «importantizar» quando se quer relevar algo.

Até tem a minha favorita: o desaparecimento súbito da palavra esperado. Hoje em dia nada se espera nem nada é esperado, é tudo «expectável». Incrível como aparece quase sempre bem escrita (com o c no devido lugar), mesmo com o desacordo aplicado. Vá lá saber-se… Enfim, podem sempre entrar em contacto para mais informações, como é esperado.

Palavras descruzadas, editado pela Clube do Autor, não é uma aborrecida listagem de erros nem um prontuário, não se preocupem. O livro é uma compilação de reflexões e pensamentos em jeito de crónicas, leve e muito divertido de ler.

Gostava de terminar dizendo que para falar ou escrever bem, para ter um estilo mais cuidado, não é necessário inventar, usar floreados supérfluos nem usar palavras que julgamos, muitas vezes, serem mais elevadas ou «inovadoras». Basta que saibamos, efectivamente, o que estamos a dizer, ou escrever, para não fazer figura de urso.

De outra forma, estaremos a repetir erros grosseiros, inadvertidamente, apenas por estarem na moda, ou por serem veiculados pelos meios mais credíveis de comunicação de massas. E não me refiro a esparguete nem fusilli.

Acabemos com esta dormência, pela saúde da língua portuguesa.

Não contribuamos para a selva em que esses ursos se movem. E, como disse no início, se a selva já é suficientemente difícil de atravessar, imaginemo-la atingida pela tal bomba atómica. Por todas estas razões, recomendo vivamente a leitura deste ensaio bastante lúcido e elucidativo sobre a nossa língua pátria.

Menos é mais, como dizia alguém. Acabemos com esta dormência, pela saúde da língua portuguesa. Lembremo-nos de que todos os bons comunicadores, seja de expressão oral ou de expressão escrita, são conhecidos pela sua simplicidade. Sem excepção.

*Livro do desassossego, por Bernardo Soares.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Emocões e artes

Next Post

Bullying – o emocional que se supera, mas não se esquece

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

O poder da música

A música tem um poder que vai para além de si própria! Julgo que não será errado dizer que, para a maioria das…

Tudo vai ser diferente

Amava-o. Ups. Não, não, não! Nunca diria isso a ninguém, mal conseguia pensar nisso! Como muito diria que, às…