Os postais que tanto espero

Abro o correio. Não há um único papel. É dia 1 de Abril e o postal não está lá.

Todos os anos recebo um postal de um lugar diferente. Há quase vinte anos que assim é, desde os meus quinze. Sempre em Março, em dias aleatórios, eu abro o correio e tiro um postal de uma qualquer cidade de um qualquer país longínquo que diz, simplesmente, “A pensar em ti, sempre. Parabéns!”. Não falha. Ou não falhava. Seul, Adelaide, Cidade do México, Estocolmo, Sapporo. Nenhuma assinatura legível, nenhuma morada de remetente, nenhuma promessa de encontro. Embora as iniciais do destinatário sejam as minhas, eu faço anos em Outubro e não conheço ninguém em nenhum daqueles países, nem alguém que pudesse viajar para todos, por isso não sou eu o destinatário real, certamente. Uma estranha, muito estranha coincidência.

Este ano Março passou comigo em alvoroço, à espera ansiosamente como se fosse uma droga, uma notícia muito aguardada. Mas nada tinha chegado.

Houve vezes, com aquele postal na mão, que sonhei com um príncipe perdido, com uma irmã fugitiva, com um amor de infância que nunca me tinha esquecido. Ao princípio, talvez no segundo ou terceiro postal, até considerei ser adoptada e que aquela pessoa fosse a minha mãe biológica, que me felicitava na minha data de nascimento verdadeira. Muitas vezes agarrei-me à esperança daqueles postais e de alguém, por aí, gostar de mim, quando sentia que o mundo me abandonava e que os namorados se cansavam das minhas inseguranças. Quando descobri que gostava de mulheres, comecei a imaginar a minha princesa encantada a aparecer-me à porta, com um passaporte cheio de carimbos para me provar que era a pessoa dos postais. Por vezes até temi que os postais parassem e que eu me sentisse perdida – sem razão, é verdade, mas quando há algo tão constante nas nossas vidas, não conseguimos evitar sentirmo-nos vazios quando isso se perde. Até com coisas más.

E já perdi. Tentei adiar esta perda – amanhã vou mudar de casa e imaginei que este seria o último postal. Não chegou. Tentei adiá-la, mas a perda chegou. O postal não veio. Morte? Extravio? Esquecimento?

Já começo a sentir o vazio.

Abro uma garrafa de vinho tinto enquanto penso no ridícula que sou, que com esta idade já devia ter mais juízo. Aqueles postais nunca foram meus, pois não? Eventualmente iriam parar. Porquê sentir-me assim? Porquê admirar-me?

Por isso, para tentar preencher o vazio, agarro-me ao postal do ano passado como se fosse uma fotografia de um ente querido que já partiu. Leio e releio os dezanove postais que recebi enquanto bebo um gole de vinho tinto. No meio do conforto do álcool, da leveza e clareza de cabeça que os primeiros goles parecem trazer, ponho a hipótese de aqueles postais serem para os donos anteriores da casa. Eu não sei nada sobre eles, e os meus pais infelizmente já morreram, mas duvido que soubessem. As cartas só tinham começado a chegar quando eu tinha quinze anos, embora tivesse vivido nesta casa desde os dez, mas o que é que isso significa, realmente? Nada, só que o remetente pode ter ficado uns anos indeciso e só ter começado a enviar mais tarde, talvez, ou ter estado perdido, não encontrar o pedaço de papel onde tinha apontado a morada. Orgulho, reconciliação. Eu não sabia. Era um mistério que me dava alento e me enervava ao mesmo tempo. Deveria eu procurar os anteriores moradores e levar-lhes os postais? Talvez trazer-lhes uma boa nova de um filho afastado, de um neto desconhecido. Afasto a hipótese porque, se não recebi nenhum postal, essa alegria rapidamente se poderia transformar numa tristeza. Não. É mentira. Afasto a hipótese porque, no fundo, quero que aqueles postais sejam só meus.

Acabo a garrafa de vinho. Já está tarde, e preciso de descansar. Guardo os postais numa caixa. E por momentos duvido se a caixa se mudará comigo ou se os postais devem ficar para sempre naquela casa.

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