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Os órfãos de filhos

Nascer, crescer, multiplicar, morrer. Monocórdico, simples, directo, inevitável. O ciclo nunca termina e completa-se sem se dar por isso. Todos nascemos. Alguns crescem. Muitos multiplicam-se. Todos morremos. Somos seres vivos, humanos, animados e dotados de sentimentos. Queremos ser amados, desejados e cuidados.

Nascer. Um desejo que se vai acumulando ao longo do tempo. O chamado relógio biológico toca e a mulher desperta. É o instinto maternal a falar mais alto. O bebé é desejado e a relação precoce estabelece-se de imediato. Ainda não nasceu, mas já é o seu rebento com quem conversa e comunica de mil maneiras diferentes. O amor de mãe nunca morre e o amor de pai vai crescendo depois do primeiro momento em que visualiza o seu prolongamento.

Cuidar e prover o seu bem-estar é o mote que motiva e direcciona os pais daquele ser frágil e totalmente dependente de outros. Nada lhe falta: bens materiais, atenções, cuidados e amor. Este será o motor da sua vida. Amar e ser amado. Sacrifícios, decisões, renúncias, tudo é avaliado para o bem-estar deste pedaço de dois seres que se amam e se prolongam. Gosto muito de ti.

Crescer é tão difícil. Implica regras, normas a serem seguidas e conselhos que nem sempre se adequam ao que pretende. A fase da rebeldia chega e parece nunca mais terminar. Mas as provas são superadas quando há entendimento e comunicação, aquela que se iniciou há muito tempo, mesmo antes do nascimento. O estado adulto chega e as opções são tantas que a cabeça hesita. Há o coração e há a razão. Deixa-me que não gosto de ti.

Multiplicar surge num horizonte tão próximo quando ainda parecia tão longínquo. Os papéis invertem-se e a ligação entre o que já foi pequeno e o que se está a formar intensifica-se. É a descoberta, a primeira vez de um sentimento tão intenso que tira a lógica, a clareza e a racionalidade. Sempre existiram mães, mas parece ser inédito e maravilhoso. Vai ser assim, desta maneira, daquela e da outra. O bebé nasce. E agora? Serei capaz? Estaremos à altura? Mãe preciso da tua ajuda.

Como fazer? Como agir da melhor forma e conseguir evitar uma guerra sem fim? Os desafios são tantos e tão frequentes que parecem ser propositados para aniquilar quem os tem de enfrentar. As teorias caem por terra, as hipóteses desaparecem e o hábito aliado ao senso comum prevalece. Será melhor assim? E se for de outra maneira? Pai como é que tu farias? Não me deixes assim.

E o ciclo volta a rodar quando a outra geração, animada com novas ideias e modos de estar se aventura no mundo dos crescidos. Nada do que existe está correcto, tudo tem de ser alterado, mas a verdade é que a consciencialização de novos parâmetros é maior. A evolução é necessária e os passos dianteiros são duros e castigadores. Sabem sempre que são melhores e que o passado pode ser apagado. Até perceberem que tal é impossível. Porque é que não te ouvi antes? Tinhas toda a razão!

No dia 6 de Novembro, um grupo de amigos saiu, mais uma vez, para o seu passeio matinal de bicicleta. Numa zona de serra, próximo de Setúbal, encontraram um idoso completamente desorientado. Este estava de pijama, molhado, cheio de frio e a sua fala era completamente descabida. No pulso uma pulseira de um hospital privado da zona, com data de entrada no dia 2. As autoridades demoraram cerca de 1 hora para o recolher, mesmo estando muito próximo. Felizmente que um dos amigos tinha uma barra energética e o senhor finalmente comeu.

Há quando tempo estava ali? Não soube dizer. Como ali chegou? Não sabia. Estranhamente ninguém o procurava. Como é possível tamanho abandono? Podemos confiar nas instituições a quem entregamos os nossos familiares? Que teria acontecido? Mais grave ainda, como é que ainda não tinham dado pela falta do senhor? A família não o visitava? Quem são os responsáveis do hospital? Tenho muita dificuldade em entender o que aconteceu.

Este homem é pai de alguém, avô, tio, cunhado, um ser humano que já teve uma vida, que foi responsável por alguém, que se construiu e viveu. Naquele momento estava espoliado da sua condição, completamente abandonado à sua sorte madrasta que o colocou numa ravina e em perigo de vida. Em que mundo vivemos? Como não se dá pela falta de uma pessoa? A aleatoriedade da vida fez com que se cruzasse com almas caridosas que o socorreram.

E agora pergunto: o que é feito dos filhos, daqueles seres que dependeram deste pai, que os apoiou, que lhes deu tudo o que precisaram, que os amou até perder a noção da realidade, de se ter perdido num labirinto sem fim? Pai não é só para pedir, para exigir, para ter. É para dar, para agradecer, para cuidar. Se estava no hospital alguém cuidou dele, alguém se interessou. De que serve ter família se ela não se interessa?

Do “gosto muito de ti” passou-se para o “deixa-me que não gosto de ti” e já não se voltou ao “preciso de ti, não me deixes e tinhas toda a razão”. Perdeu a sua dignidade, a sua identidade, a sua vida autónoma. Infelizmente tornou-se dependente e voltou a uma infância desvalida e incoerente. Agora é ele que precisa que o cuidem, que o façam sentir que ainda é importante, que o amem.

Nem consigo expressar a minha revolta, aquilo que sinto com esta indiferença que nos toca todos os dias. Não conhecemos o vizinho, não queremos saber. Se se puder evitar aborrecimentos, saltar a responsabilidade e continuar com a nossa vida fútil, então é muito melhor. É assim que muitos gostariam que fosse. Mas a verdade é que é degradante que isto aconteça, retira toda a humanidade a quem o pratica. Não podemos nem devemos permitir que isto continue a suceder.

São os nossos velhos, aqueles que foram novos, que nos foram tão importantes e que nos educaram. Onde está o respeito? São as nossas raízes, o nosso passado, a nossa história, os nossos genes, a velha glória de acontecimentos marcantes que nos encaminharam até ao final. Devemos guardar um pouco do nosso tempo para os gratificar, para os apoiar e sobretudo, a meu ver o mais importante, para os amar.

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