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Os cânones, a música

Na mais recente edição do Prémio Nobel de Literatura, foram indicados ao mesmo tempo os nomes de dois vencedores. Um deles deve ser entendido pelo público como o vencedor de 2018 e o outro o de 2019.

 

A decisão de apontar dois nomes de uma vez já havia sido anunciada no princípio deste ano e surgia na sequência de uma outra edição da premiação sueca que incomodou algumas pessoas: em 2016 o escolhido foi Bob Dylan, ainda se devem lembrar, e como desdobramento da escolha foram trazidas à tona insatisfações que podem ser expressas mais ou menos assim: “músico é poeta?”, “cantor que interpreta e compõe está realmente ao nível do artista que escreve um romance, um conto, uma crónica?”

 

Confesso que não fiquei lá muito curiosa para saber o motivo da acumulação de escolhas em 2019 (ou o motivo do lapso entre Kazuo Ishiguro, vencedor de 2017, e a dupla de escritores aqui mencionada); a atribuição de prémios literários atravessa tantas outras discussões que acabam por não ser feitas com rigor – como a do estabelecimento de um cânone -, que não me mobiliza nem comove.

 

Por ocasião do anúncio dos nomes dos ganhadores de 2018 e de 2019, Olga Tokarczuk e Peter Handke, contudo, sem querer me deter no assunto eu ouvi uma série de comentários de natureza política, uns a meu ver mais pertinentes do que outros. E voltei a pensar na necessidade e na forma de homenagear escritores! Ouvi conversa informal numa emissora de rádio portuguesa, por exemplo, e veio à baila a importância de já não terem optado por pessoas que escrevem em inglês. Seria um avanço, segundo os intervenientes do programa, considerada a força com que o idioma se impõe, impondo também culturas anglo-saxônicas. Houve quem dissesse, noutro programa, que o facto de terem selecionado uma mulher a partir de uma lista diminuta (com oito finalistas) é por si próprio significativo – na história do Prémio Nobel há 14 vencedoras antes de Olga Tokarczuk. É matéria para um texto inteiro, não tenho dúvida! Só não se trata deste texto…

 

A minha atenção voltou definitivamente para a entrega do prémio a Bob Dylan porque a música sempre me interessa, a música me põe a mexer antes que eu chegue ao papel e sua mancha gráfica. Não sou propriamente fã de Bob Dylan, que aliás canta em inglês, que aliás é um homem e que por acaso ou não recebeu diploma e medalha numa cerimônia especial em Estocolmo, apartada da cerimônia oficial e mais ampla.

 

O que eu sei é que a música em geral comunica e o faz de uma maneira muito própria, muito expressiva e também memorável, no melhor sentido da palavra. Comunica por sons, sem dúvida alguma audíveis. Do lado dos livros, existem aqueles cujas palavras nós ouvimos como se alguém as estivesse a dizer em voz alta. Existem os livros que comentam o que um som evoca, como O grande Gatsby, em que Scott Fitzgerald colocou o narrador a descrever num crescendo a voz da personagem Daisy, que falaria de uma forma cantada, sussurrada, musical e, ao fim e ao cabo, com uma voz “cheia de dinheiro”. Ainda me lembro da primeira vez em que dei pela associação entre voz e poder neste livro. 

 

E eis que existe o texto verbal que nasce para ser cantado, podendo ou não sobreviver bem no papel. É ele que mais me deleita e intriga, na polêmica dos eleitos para o Prémio Nobel de Literatura.

 

Os versos que nós repetimos quando cantamos, sejam os versos de um refrão ou não, são literatura potencializada, com melodia, com harmonia, dentro de um contexto mais próximo de ser inferido do que o contexto da produção de um livro. Pensem em alguém como Sting. Ao criar “Englishman in New York”, contou sob a forma de música, com pouco mais de quatro minutos de duração, a história de um seu conterrâneo famoso, que ele decidiu homenagear por ter descoberto nas atitudes do homem uma nobreza que ele entendeu como singularizante. Podemos ficar atentos ao conselho dessa música (“Be yourself / no matter what they say”), podemos estar na pele do expatriado, em função do contacto com a música, podemos ver os lados distintos que compõem um cenário cosmopolita, tudo porque as características da letra de uma música, e esta é um caso, convergem para essa apreensão. Mergulhamos numa música e esse mergulho não é intelectual nem raro, faz-nos bem. Esse último ponto é o ponto para mim. 

 

Há muito que se diga sobre a música, é claro que sim, mas inegavelmente ela convida e ela envolve, ela aceita como o papel não consegue fazer. A música é de todos, a música é dos iniciados e dos leigos, é dos pimbas ou dos bregas e dos poetas que se levam a sério, dos faladores e dos caladinhos, dos eloquentes e dos que engasgam diante da responsabilidade de transmitir uma mensagem com sentido e com fluidez, com graça.

 

Os versos de uma música têm aquela concisão que elucida, abre mundos e apaixona. Não falo dos versos de Dylan, que eu conheço mal, volto a dizer, mas falo a partir do lugar confortável de brasileira que desde sempre ouve boa música no seu próprio idioma.

 

Lembrar do nome de Bob Dylan para o Prémio Nobel de Literatura não trouxe unanimidade, longe disso, mas atingiu um ponto que ajuda a aproximar o texto escrito de um público numeroso. Porque a música diz tudo e tudo nos faz sentir, dá-nos tudo e temos então um modo de estar no mundo, assim como a poesia de certo modo fechada nos livros (“Se leio um livro e ele torna o meu corpo tão frio que fogo nenhum o pode aquecer, sei que isso é poesia”, escreveu Emily Dickinson).  

 

Já experimentaram ouvir Adriana Calcanhoto cantar “Sobre a tarde”, do álbum chamado “Cantada” (palavra de sentido múltiplo, em lugares onde essa riqueza é acolhida, lá está: factual e sensual)? Pois sugiro que experimentem! E me digam se é  ou não é inteiramente possível e prazeroso abstrair com a música. Adriana canta “Cai a tarde / Como sempre / Como sempre / Diferente”. Porque está a fazer música pode brincar com o sentido das palavras, porque uma música tem um ritmo pode ir e vir, com palavras e com pensamentos, porque é da música pode nos ajudar a saborear aquilo que já sabíamos – todo mundo conhece um pôr-do-sol! – misturado àquilo que é preciso lembrar dentro do já sabido: tudo parece igual, tudo no fundo se está a reproduzir, mas em tudo há nuance, em tudo há novidade. A poesia é pródiga em exemplos dessa mesma desconcertante captação do que é familiar e ao mesmo tempo peculiar ou até insondável, passando por Fernando Pessoa (“Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo”) e por Carlos Drummond de Andrade (“Daqui estou vendo o amor / irritado, desapontado, / mas também vejo outras coisas… Vejo muitas outras coisas / que não ouso compreender…”). O ruído, chegamos ao ruído afinal, parece se insinuar na cabeça das pessoas quando se estende aos músicos a homenagem que nos poetas fica bem. Será que a festa que a música proporciona, aquele banho de vida que ela nos dá assusta quem está mais à vontade com a solidão da leitura e do livro? Em face do incómodo que o Nobel da Literatura tem provocado, lanço aqui a questão.

 

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