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Os cacos

Observa a gata da mãe a lamber a pata, vagarosamente, e a passar por trás das orelhas. Olha para a gata como quem não quer olhar, atraída e invejosa da tranquilidade do bicho, da falta de consciência, do instinto. A gata chama-se Dona Ermelinda, como o vinho, e lambe-se de olhos fechados. No dia em que a velha gata se perdeu, ela e a mãe gritaram “Dona Ermelinda!” pelas ruas da cidade, carregadas de preocupação, parecendo duas loucas à procura de uma idosa com alzheimer. Encontraram-na dentro de um armário da cozinha e riram-se daquilo que as pessoas poderiam ter pensado.

A Dona Ermelinda ouve um ruído e olha, de repente. Pata levantada, distraída com algo, deixando uma função a meio. Língua de fora, olhos muito atentos. Volta a lamber-se. Falso alarme. Ela passa a vista da gata para a televisão. Um casal chateia-se. Lembra-se dele. Odeia lembrar-se dele, e assim que o pensamento lhe traz arrepios ao corpo todo – de raiva, de impotência, de confusão –, ela tenta deslembrar-se, mas a memória só lhe mostra que tem ainda mais força, mesmo que ela empurre e empurre e feche a porta e coloque móveis atrás, impedindo a memória de entrar. Há sempre uma fresta, uma janela, um buraco de fechadura que a leva à ansiedade.

Zapping.

Um olho negro.

Zapping.

Ouve a língua da gata a passar, de novo, pelo pêlo. Olha para baixo. A Dona Ermelinda voltou à sua higiene. Volta a olhar para a televisão.

Zapping.

O olho negro não lhe sai da cabeça. A alma colada, as fissuras perfeitamente visíveis, uma alma remendada com os cacos do que sobrou. Mas a calma estava a fazer-lhe bem. Uma semana de calma, no sofá da mãe, a curar as feridas do corpo e a procurar todos os pedaços de si própria. Um decisão importante, sair de casa e deixá-lo. Uma decisão importante, colocar o medo de lado e dar um passo para recuperar o controlo. Porque é que as pessoas são tão complexas e complicadas? Como é que chegaram àquela situação? Como é que ela deixou, como é que ele deixou?

Um novo barulho. A Dona Ermelinda e ela olham quase simultaneamente. O barulho vem da cozinha. O medo volta. Da porta das traseiras? Onde está a mãe dela? Ele sabe que ela está ali, tem de saber. Para que outro lugar é que iria? A polícia, onde está a polícia, tem de chamar a polícia!

O pânico é como uma mão agarrada aos tornozelos, tão forte que ela tem de olhar para ter a certeza que nada a agarra ao chão, que não está com os pés enterrados como uma árvore. Corre para o quarto. Tranca-se no quarto e lembra-se de todas as histórias que já ouviu, de todos os dados no noticiário, de todas as mulheres mortas, as famílias destruídas, as tragédias. Sempre foi pessimista, naquele momento não consegue recordar as histórias de sucesso. Dedos trémulos marcam o número da polícia. Erra. Marca de novo. Treme violentamente. Acerta. Explica enquanto chora ao telefone. Não larga o telefone até sentir que batem à porta. Soluça e tapa a boca com medo de ser ele, de que ele a tenha descoberto, de que saiba que ela está ali. Vai rebentar a porta. Vai matá-la.

“Sou eu!” a voz da mãe.

Cai. Fraqueja, pernas sem força, não sabe se é dos nervos ou do alívio. Rasteja, de gatas, e abre a porta do quarto. A mãe encontra-a como se fosse um animal perdido, abraça-a como se fosse uma criança maltratada. Os polícias encontram-nas abraçadas, ajoelhadas no chão. Não se mexem. A mãe aperta-a com mais força enquanto explica, baixinho, como se ela não pudesse ouvir, que tinha ido às compras e entrado pela porta das traseiras, que foi só um susto, que se esqueceu que poderia assustar a filha. Os olhos dos polícias têm compaixão, pena, impotência quando olham para ela. Perguntam-se se o mundo dela voltará a ser feliz. Ela fecha os olhos porque não consegue ver a resposta.

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